Costuma
dizer-se da vida de hoje, que é tecida de egoísmo, e lhe falta
espírito ou prática de comunhão. Mas o que vimos na noite de
domingo foi que não há dramas estanques, pois os próprios
elementos mecânicos da civilização contribuem para a formação de
um todo solidário e vibrátil, uma espécie de “vida unânime”,
sonhada pelo poeta, em que os casos particulares, sem perda de sua
especificidade, passam a constituir casos de todos nós,
multiplicando-se ao infinito.
Um
edifício incendiava-se ao vento do mar, e onde quer que houvesse
aparelho de rádio, pessoas participavam da situação, embora
impotentes para remediá-la: não era uma notícia que entrava pela
casa adentro, mas um acontecimento a que fôssemos transportados, a
que aderíamos, que iria integrar-se no quadro de experiências
vividas. Mais: um acontecimento metade ainda por acontecer, que se
desdobrava em torno e dentro de nós, que não tínhamos forças para
impedi-lo, e a ele nos sentíamos amarrados por essa sirene
longínqua, ressoando no interior de nossa casa protegida.
Éramos
tão frágeis e desprevenidos como esses moradores que se deixaram
ficar repousando em seus quartos, e foram acordados pelo fumo; e tão
pobres de recursos como esses bombeiros que, tendo escadas
gigantescas, não puderam usá-las convenientemente, refletores e não
puderam acendê-los, cobertas de lona e não puderam abri-las.
Sabíamos que, entre a noite e a morte, alguns retardatários
imploravam, de seus balcões, que uma chance comum de salvamento lhes
fosse oferecida; e não podíamos dizer a esses quase desesperados
que esperassem mais alguns instantes apenas, pois a adesão emocional
da população saberia vencer todas as deficiências, subitamente
reveladas, do serviço de combate ao fogo, do sistema de construção
dos edifícios e do funcionamento normal da cidade, que não pode ser
apenas um montão de casas e pistas de corrida, sem qualquer proteção
para a vida humana. Tínhamos de assistir à queda de alguns corpos e
à descoberta de outros, como a cenas programadas de um espetáculo;
e mesmo os que não viram fisicamente tais cenas, elaboravam com
horror sua representação mental. Tudo isso aconteceu no interior de
cada casa do Rio, no interior de cada habitante, e não apenas num
edifício que abrigava uma boate famosa e estava numa linha discutida
de desapropriação.
Pela
madrugada, quando todos nos sentíamos deprimidos ante o que fora
menos um incêndio entre muitos do que um ensejo de apurar a extensão
de nossas misérias urbanas, uma voz entrou também pelas casas,
explicando e tranquilizando. Era o comandante do Corpo de Bombeiros,
a atestar a qualidade moderna de seu equipamento, embora lhe
admitisse a insuficiente quantidade. E distribuía à população um
conselho lúgubre: que todo morador de edifício, do quinto andar
para cima, tenha sempre em casa, ao alcance dos braços, uma corda.
Uma corda longa e forte, atada em nó de metro em metro, não para
enforcar-se, mas para salvar-se numa era em que a técnica tem poder
bastante para levantar construções orgulhosas de mais de cem
andares e não o tem para garantir a vida de quem habita esses altos
planos. A corda passará a ser peça essencial do equipamento
doméstico, e mais do que isso, individual; será uma escada
privativa e portátil, colada sinistramente à nossa existência.
Para usá-la, treinaremos as crianças antes de ensinar-lhes as
primeiras letras, do mesmo modo que manteremos nos velhos a “forma”
indispensável; quanto aos inválidos, fiquem nas mãos de Deus. É a
lição do incêndio do Vogue*, e se contraria aquele
princípio de fraternidade confrangida, que se manifestou nas almas,
durante a noite de domingo, devemos reconhecer que a corda, pelo
menos, é esperança para alguns.
*A
boate Vogue, localizada na rua Princesa Isabel, em Copacabana,
incendiou-se no dia 14 de agosto de 1955.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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