sábado, 9 de setembro de 2023

O Azarão | 5

Este é um capítulo importante.
Pelo menos, eu acho que é.
Os hematomas no meu rosto sararam muito rápido, e passei toda a fase seguinte da minha vida andando por aí. Uma coisa estava para acontecer. Estava lá fora, em alguma parte além da vidinha limitada de sempre. Estava lá fora; não que me esperasse, mas existia. Era. Talvez estivesse só imaginando se eu ia alcançá-la.
Talvez eu esteja apenas falando besteira.
Tanto faz.
O que aconteceu foi que conheci uma garota quando estava trabalhando com papai durante o sábado.
Ela valia a pena, sério.
Eu tinha passado a manhã inteira cavando uma fossa debaixo da casa, dessa vez, em um bairro que ficava a uns cinco quilômetros do nosso, e estava morto. Morto na hora do almoço.
Tinha sujeira no corpo todo, e meu pescoço estava esticado e rígido de ficar curvado, cavando. Quando saí da parte de baixo da casa, ela estava lá. Estava lá com a mãe e o pai, e era tão real que quase engasguei com a boca seca. Tinha a minha altura e um rosto calmo e real. Sorriu para mim com lábios reais, e a voz real me disse “Oi” quando nos encontramos.
Limpei a mão direita na calça e cumprimentei todos eles. Mãe. Pai. Garota.
Meu filho, Cameron — falou papai quando me arrastei para longe, tirando a terra do cabelo. Até parecia que ele gostava um pouco de me ter por perto.
Bom-dia — falei, quando ergui os olhos para eles, e papai meio que levou os pais dela para dar uma volta e ver o que tínhamos feito na propriedade. Eles estavam fazendo umas ampliações bem grandes que bagunçaram um pouco o terreno. Mas era uma bela casa.
A garota.
Rebecca — tinha me dito a mãe.
Enquanto papai dava a grande volta, fiquei sozinho com ela.
O que eu devia fazer? Falar? Esperar? Sentar? No fim, tudo que fizemos foi ficar ali de pé um pouco e depois sentar numa dessas cadeiras dobráveis. Desviei os olhos, olhei para ela e os desviei de novo.
Que animal.
Eu tinha mesmo jeito com as damas, não é? Finalmente, quando era quase tarde demais, e os coroas estavam voltando, falei para ela com uma voz baixa e surtada: “Eu gosto de trabalhar aqui”, e, depois do silêncio, nós dois rimos um pouco e pensamos Que coisa esquisita de se dizer. Eu gosto de trabalhar aqui. Eu gosto de trabalhar aqui. Eu gosto. Trabalhar aqui. Eu. Gosto de trabalhar aqui.
Enquanto repetia isso mentalmente, ficava imaginando se ela sabia o que realmente significava.
Acho que sabia.
Rebecca.
Era um belo nome, e, embora eu gostasse da tranquilidade do rosto dela, gostava mais ainda da voz. Me lembrava dela e a deixava cantar através de mim.
Só aquele “Oi”. Patético, eu sei, mas, quando a sua experiência com mulheres é tão pequena quanto a minha, você aproveita o que tem.
Isso durou toda a tarde. E nem tinha tanta dor assim no trabalho que eu fazia, porque eu tinha Rebecca agora. Tinha a voz dela, e a realidade daquilo para entorpecer tudo. Entorpeceu as bolhas que se formavam na base dos dedos e amaciou a pá que castigava minha espinha.
Oi — dissera ela. — Oi. — E tinha rido comigo, quando eu disse alguma coisa tola. As garotas já tinham rido de mim, mas era raro eu rir com uma delas. Era raro me sentir bem com uma cidade sobre os ombros e o rosto de uma garota tão perto do meu. Ela respirava e via as coisas, e era real. Essa era a melhor parte. Era mais real que a auxiliar de dentista, porque não estava atrás de um balcão, sendo paga para ser simpática. E, com certeza, era mais real que as mulheres daquele catálogo, porque não dava para fazer picadinho dessa garota. Eu nunca ousaria machucá-la, xingá-la ou escondê-la debaixo da cama.
Olhos. Olhos vivos. Cabelo claro descendo pelas costas. Uma espinha na lateral do rosto, perto do cabelo. Pescoço e ombros bonitos. Não era uma rainha da beleza.
Não uma daquelas. Você sabe, aquelas.
Era real.
Ela tocou música depois, e não era algo de que eu gostasse, mas isso a tornou ainda mais real. A situação toda até me fez sorrir para o papai, quando ele me deu uma bronca por cavar no local errado.
Desculpa, pai — falei.
Cave ali.
Fico imaginando se ele sabia. Duvido. Pareceu não entender nada quando perguntei se voltaríamos na semana seguinte.
Claro, voltaremos — respondeu, curto e grosso. Um pouco depois, perguntei: — Qual é o sobrenome dessa gente? — Conlon.
Rebecca Conlon.
O que mais me impressionou é que, de repente, comecei a rezar. Comecei a fazer orações por Rebecca Conlon e a família dela. Não conseguia parar.
Por favor, abençoe Rebecca Conlon — ficava pedindo a Deus. — Faça com que ela fique bem, certo? Faça ela e a família dela ficarem bem hoje à noite. É só o que peço. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. — E fazia o sinal da cruz como os católicos fazem, e nem sou católico. Não sei o que sou.
Na semana seguinte, continuei rezando e continuei me esforçando para me lembrar do rosto, da voz dela.
Eu seria bom para ela — continuei dizendo a Deus. — Seria.
Na verdade, estava dividido entre o amor que sentia pelo rosto e pelo corpo dela e o amor que tinha pela voz dela. O rosto tinha muita personalidade. Força. Eu adorava.
E, com certeza, adorava o pescoço e a garganta, e os ombros, os braços, e as pernas dela. Tudo isso, e então tinha a voz.
A voz vinha de alguma parte dela. Vinha de alguma parte que não se mostrava, eu esperava, para qualquer um.
A pergunta era: Em qual parte dela eu estava mais interessado? Era na aparência ou na realidade interior que eu podia sentir saindo sorrateiramente? Comecei a dar caminhadas, só para pensar nela, só para imaginar o que estava fazendo, e se, por acaso, estava pensando em mim.
Virou uma tortura.
Deus, ela está pensando em mim? — perguntei a Deus.
Deus não respondeu, então eu não sabia. Sabia apenas que andava paralelo ao trânsito, que ria ao passar por mim. Multidões desciam do ônibus e trens me ignorando ao caminhar. Não importava. Eu tinha Rebecca Conlon. Nada mais tinha importância para mim. Mesmo ao voltar para casa, quando discutia com Rube, eu não me preocupava.
Continuava a não me preocupar porque ela estava em algum lugar perto de tudo isso no meu pensamento.
Alegria.
Era isso que eu sentia? Algumas vezes.
Outras vezes, era invadido por pensamentos de dúvida e um tipo de verdade que me dizia que ela não tinha pensado em mim. Era possível, pois as coisas nunca acontecem do jeito que devem. Era muito provável que uma garota doce como aquela pudesse arrumar coisa melhor que eu. Podia arrumar coisa melhor que um cara que planejava assaltos ridículos com o irmão, era despedido de bancas de jornal e humilhado pela mãe.
Algumas vezes, eu pensava nela nua, mas nunca durante muito tempo. Não queria ela só para isso. Sério.
Eu queria encontrar o local de onde vinha a voz dela. Era isso que queria. Queria ser bom para ela. Queria agradá-la, e suplicava para isso acontecer. Suplicar, porém, não leva a lugar nenhum. Sabia que era verdade, mas fazia isso em meu íntimo, de qualquer forma, enquanto contava as horas até voltar para ela.
Coisas aconteceram durante a semana que se seguirá nos próximos capítulos, mas agora eu devo contar no fim deste o que aconteceu quando papai e eu aparecemos na casa dos Conlon no sábado seguinte.
Foi isso que aconteceu.
Meu coração bateu forte.

Uma delas voltou.
Dá pra acreditar? Que cara de pau.
Sabe do que estou falando? É uma das mulheres daquele catálogo de roupa de banho, e ela vai atrás de mim na cozinha.
Sedutora.
Está bolorenta e meio escurecida. Suada.
Olá, Cameron. — Ela continua caminhando e puxa uma cadeira para se sentar bem na minha frente. Nossos joelhos se tocam, ela chega perto de mim desse jeito. O sorriso dela significa alguma coisa. Perigo?Desejo?Erotismo? Como posso sonhar com isso agora? Hoje à noite? Depois de tudo que aconteceu ultimamente? Só posso estar de brincadeira comigo mesmo.
Será que é um teste? Bem, seja lá o que for, ela se curva na minha direção e lambe os lábios. A roupa de banho é um biquíni, que é amarelo e mostra muita coisa do corpo dela. Dá para acreditar? Deixa um dos dedos tocar meu pescoço, deslizando-o por ele, e a unha é leve o suficiente para não arranhar. É suave, e alguma coisa me diz para aproveitar ao máximo, para não deixá-la parar. Então, alguma outra coisa grita, em alguma parte, aos meus pés, e tenho que lhe pedir que pare. Sobe.
Ela está em cima de mim. Respirando.
Sinto o perfume e o movimento delicado do cabelo dela. Suas mãos começam a me despir e a boca toca a minha. Eu sinto. Aproximando. Empurrando. Na minha direção.
Ela desce, deixando os dentes tocarem apele do meu pescoço. Me beija, por muito tempo, com a língua tocando... Dou um salto.
O quê? Estou de pé.
O quê? — pergunta. Ohh...
Não posso. — Seguro a mão dela para dizer a verdade. — Não posso. Simplesmente, não posso.
Por que não? Os olhos são de um azul forte, e quase deixo que continue, quando começa a acariciar minha barriga, buscando as outras partes do meu corpo. Faço-a parar, bem na hora, fico imaginando como consegui.
Me afasto e respondo: — Eu tenho alguém real. Alguém que não é só…
Só o que...
Verdade: — Uma coisa que eu só deseje.
É só isso que sou? Uma coisa? — Sim. — Vejo a mudança.
Ela parece um fantasma e quando estendo a mão para tocá-la, minha mão a atravessa.
Sabe — explico — olhe para mim. Um cara como eu não pode realmente tocar alguém como você. É assim que as coisas funcionam.
Quando ela desaparece completamente, percebo que minha realidade não é a garota do catálogo ou a rainha da beleza da escola ou alguém assim.
A modelo usando roupa de banho deixara a bomba sobre a mesa. Vou pegá-la, mas não a abro por medo de explodir no meu rosto.
A rainha da beleza que eu desejo.
A garota real que desejo agradar.
Sonho completo.

Markus Zusak, in O Azarão

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