No
palácio de Messina residiam naquele tempo duas damas, chamadas Hero
e Beatriz. A primeira era filha de Leonato, governador da cidade; e a
segunda, sobrinha do mesmo senhor.
Beatriz
era de temperamento alegre e gostava de divertir, com suas
espirituosas saídas, a prima Hero, que possuía gênio mais
recatado. O que quer que acontecesse servia de pretexto para a
jovialidade de Beatriz.
No
tempo em que começa a história das duas damas, tinham vindo visitar
Leonato alguns jovens de alto posto no exército, que aproveitavam
uma ocasional passagem por Messina. Regressavam de uma guerra
recém-terminada, em que se haviam distinguido por grande bravura.
Entre eles, encontravam-se dom Pedro, príncipe de Aragão, e seu
amigo Cláudio, senhor de Florença. Também os acompanhava um senhor
de Pádua, o bravo e divertido Benedick.
Esses
estrangeiros já haviam estado anteriormente em Messina, e o
hospitaleiro governador levou-os à presença da filha e da sobrinha
como velhos amigos.
Benedick,
logo de chegada, travou animada palestra com Leonato e o príncipe.
Beatriz, que não gostava de ficar de fora, interrompeu Benedick,
dizendo-lhe:
— Espanta-me
que ainda esteja a falar, signior Benedick. Ninguém lhe presta
atenção.
Apesar
de tão estouvado quanto Beatriz, Benedick não gostou da liberdade
com que esta o saudara; achou que não ficava bem a uma dama ser tão
solta de língua e lembrou que, da última vez em que estivera em
Messina, Beatriz costumava escolhê-lo para alvo das suas troças.
Não há ninguém que goste menos de ser alvo de piadas do que
aqueles que costumam ridicularizar os outros. Assim acontecia com
Benedick e Beatriz. Nunca se encontravam os dois sem que estourasse
entre ambos uma verdadeira guerra de motejos e sempre se separavam
mutuamente desgostosos. Por conseguinte, quando Beatriz o
interrompeu, Benedick fingiu que ainda não notara sua presença:
— Com
que, então, ainda está viva, minha cara senhorita Desprezo?
E
romperam de novo as hostilidades, seguindo-se uma azeda querela,
durante a qual Beatriz, embora ciente do valor dele na última
guerra, declarou-se capaz de comer tudo o que Benedick matara até
então. Depois, observando que o príncipe apreciava as tiradas de
Benedick, chamou-o de “bobo do príncipe”. Tal sarcasmo calou
mais profundamente no espírito de Benedick do que tudo o que Beatriz
lhe dissera antes. Quando ela o acusara de covarde, confessando-se
capaz de comer tudo o que ele havia matado, Benedick não dera
importância, pois tinha consciência de ser um bravo. Mas não há
nada que cause mais temor aos grandes talentos do que a imputação
de bufonaria, pois às vezes a acusação não está longe da
verdade. Assim, Benedick passou a odiar Beatriz quando ela o chamou
de “bobo do príncipe”.
A
modesta Hero mantinha-se em silêncio ante os nobres hóspedes. E,
enquanto Cláudio observava como o tempo lhe realçara a beleza e
contemplava o encanto de suas feições (pois era uma admirável
moça), divertia-se o príncipe com o apimentado diálogo entre
Benedick e Beatriz.
— Que
jovem espirituosa! — segredou a Leonato. —Daria uma excelente
esposa para Benedick.
— Ó
meu senhor — replicou Leonato —, se eles se casassem, antes de
uma semana acabariam loucos.
Embora
Leonato não acreditasse que eles pudessem constituir um
casal-modelo, o príncipe não desistiu da ideia de casá-los.
Quando
o príncipe se retirou com Cláudio, descobriu que o casamento que
projetara não fora o único planejado naquela noite, pois de tal
modo falou Cláudio a respeito de Hero que logo ele suspeitou de sua
paixão. Regozijou-se com isso e perguntou a Cláudio:
— Gostas
de Hero?
— Ó
meu senhor, da última vez que estive em Messina, vi-a com olhos de
soldado, que dela se agradava, mas não tinha tempo para amores.
Agora, porém, nestes felizes tempos de paz, os pensamentos de guerra
deixaram seus lugares vagos em meu espírito; vieram substituí-los
suaves e delicados pensamentos, todos a segredar-me o quanto Hero é
linda e a relembrar-me de que eu já a amava antes de partir para a
guerra.
Tanto
impressionou ao príncipe essa confissão que este foi logo solicitar
a Leonato que consentisse em receber Cláudio como genro. Leonato
acedeu, e o príncipe não teve grande dificuldade para persuadir a
própria Hero a atender ao pedido do nobre Cláudio, um cavalheiro de
raras qualidades. Assistido pelo bondoso príncipe, Cláudio não
tardou em conseguir de Leonato a fixação de um breve prazo para a
realização do casamento.
Poucos
dias tinha Cláudio de esperar para se tornar esposo de sua querida.
Mesmo assim, achava o intervalo demasiado insuportável, tão certo é
que os jovens, na maioria, não têm paciência alguma quando é
preciso esperar pelo desenlace de qualquer coisa que lhes toque o
coração. Então o príncipe, para que a espera parecesse mais
curta, sugeriu, como um alegre passatempo, fazerem com que Benedick e
Beatriz se enamorassem um do outro. Cláudio anuiu prazerosamente a
tal fantasia do príncipe, Leonato prometeu auxiliá-los, e a própria
Hero declarou que oferecia os seus modestos préstimos para conseguir
um bom marido para a prima.
Era
este o plano imaginado pelo príncipe: os homens fariam crer a
Benedick que Beatriz o amava, e Hero convenceria Beatriz de que
Benedick estava apaixonado por ela.
O
príncipe, Leonato e Cláudio começaram primeiro suas manobras.
Aproveitando uma ocasião em que Benedick, tranquilamente sentado,
lia num caramanchão, o príncipe e seus cúmplices instalaram-se
entre as árvores, escondidos mas suficientemente próximos para que
Benedick ouvisse o que diziam. Depois de uma despreocupada conversa,
iniciou o príncipe:
— Escuta,
Leonato, não me disseste outro dia que tua sobrinha Beatriz estava
apaixonada pelo signior Benedick? Nunca pensei que essa moça viesse
a gostar de algum homem.
— Nem
eu tampouco, meu senhor — respondeu Leonato. — E o que mais
espanta é que ela se apaixonasse exatamente por Benedick, a quem
sempre pareceu externar desagrado.
Cláudio
confirmou, acrescentando que Hero lhe contara que Beatriz amava tanto
a Benedick que sem dúvida morreria de pesar se não fosse
correspondida por ele. Leonato e Cláudio pareciam assentir em que
isso era impossível, por ele estar sempre a troçar de todas as
belas, e particularmente de Beatriz.
O
príncipe fingia ouvir tudo com grande pena de Beatriz e ponderou:
— Seria
bom informarmos a Benedick.
— Para
quê? — aparteou Cláudio. — Para ele rir e martirizar ainda mais
a pobre moça?
— Se
ele o fizesse — declarou o príncipe —, seria uma boa razão para
enforcá-lo, pois Beatriz é uma excelente menina e muito ajuizada em
tudo, exceto nesse amor por Benedick.
Depois,
o príncipe fez sinal aos companheiros para continuarem o passeio,
deixando Benedick a meditar sobre o que ouvira.
Benedick
escutara sofregamente a conversa e dissera consigo mesmo, ao ouvir
que Beatriz o amava:
— Será
possível? Será que o vento sopra daquelas bandas?
Depois
que os outros se retiraram, começou ele a raciocinar com os seus
botões:
— Não
pode ser brincadeira! Eles falavam sério. Souberam de tudo por
intermédio de Hero e pareciam com pena da moça. Com que então ela
me ama? Devo pagar na mesma moeda! E eu que nunca pensei em me casar!
Quando afirmava que morreria solteiro, nem imaginava que iria viver
para ser marido. Dizem eles que a moça é virtuosa e bonita. E de
fato é. É ajuizada em tudo, exceto em me amar. Qual?! Isso não é
prova de insensatez. Mas aí vem Beatriz. De hoje em diante, ela será
encantadora! Noto nela alguns sinais de amor.
Beatriz
aproximou-se e disse-lhe com o costumeiro sarcasmo:
— Contra
a minha vontade, mandam-me convidá-lo para o jantar.
Benedick,
que nunca antes se sentira inclinado a lhe falar polidamente,
replicou:
— Encantadora
Beatriz, agradeço-lhe o incômodo.
Quando,
após duas ou três frases rudes, Beatriz o deixou, Benedick julgou
distinguir uma oculta ternura sob as descorteses palavras que ela
proferira. Então, disse em voz alta:
— Se
eu não tiver piedade dela, serei um vilão. Se não a amar, serei um
judeu. Vou ver se consigo um retrato dela.
Apanhado
assim Benedick na rede que lhe haviam armado, agora era a vez de Hero
desempenhar seu papel com Beatriz. Mandou ela chamar a Úrsula e a
Margarida, duas damas de companhia da prima, e disse à última:
— Boa
Margarida, corre à sala de visitas. Lá, encontrarás Beatriz a
conversar com o príncipe e Cláudio. Segreda-lhe que Úrsula e eu
estamos passeando no pomar e que ela é o assunto da nossa conversa.
Aconselha-a que venha esconder-se no aprazível caramanchão onde as
madressilvas, desabrochadas pelo sol, impedem, como ingratas
favoritas, o próprio sol de entrar.
Aquele
era o mesmo caramanchão onde Benedick, pouco antes, ouvira a
conversa que tanto o interessara.
— Garanto
que a farei vir imediatamente — afiançou Margarida.
Hero,
então, levou Úrsula para o pomar, recomendando-lhe:
— Quando
Beatriz chegar, Úrsula, começaremos a passear de um lado para o
outro nesta alameda. Falaremos de Benedick e, quando eu o citar, tu o
elogiarás como nenhum homem jamais o mereceu. Devo contar-te que
Benedick se acha enamorado de Beatriz. Bem, comecemos... Olha,
Beatriz corre como uma pernalta para ouvir nossa conversa. — Hero
então declarou, como em resposta a alguma coisa que Úrsula lhe
dissera: — Não, Úrsula. Ela é demasiado desdenhosa. E arisca
como um pássaro dos rochedos.
— Mas
tens certeza — replicou Úrsula — de que Benedick ama Beatriz tão
apaixonadamente?
— Assim
garante o príncipe — replicou Hero — e o meu senhor Cláudio.
Eles até me pediram que o comunicasse à minha prima. Mas eu os
persuadi de que, se estimassem Benedick, nunca deixassem Beatriz
suspeitar de nada.
— Certamente,
é bom que Beatriz nunca saiba do amor de Benedick, senão troçaria
dele impiedosamente.
— A
falar a verdade, nunca vi homem, por mais experiente, nobre, jovem ou
bonito que fosse, que não desagradasse a Beatriz.
— Também,
com uma boca daquelas...
— Eu
é que não me atreveria a falar-lhe no assunto; ela me arrasaria...
— Ora,
essa tua prima! — exclamou Úrsula. — Ela não pode ser tão
desprovida de senso para recusar um cavalheiro tão distinto como o
signior Benedick.
— Ele
tem um nome excelente. E é, sem dúvida, o primeiro homem da Itália,
com exceção, está visto, do meu querido Cláudio.
Hero
fez um sinal à companheira de que era hora de mudarem de assunto, e
Úrsula perguntou:
— E
quando será teu casamento?
Hero
disse-lhe que seria no dia seguinte e convidou-a para irem examinar o
enxoval de bodas, pois desejava consultá-la a respeito.
Beatriz,
que ouvira, quase sem respiração, toda a conversa, exclamou, depois
que as duas se retiraram:
— Que
fogo me queima o ouvido! Será verdade? Adeus, má vontade e
desprezo! Adeus, orgulho feminino! Amemos, Benedick! Hei de te
corresponder, subjugando ao teu amor meu bravio coração!
Seria
muito divertido ver aqueles velhos inimigos transformados em amorosos
amiguinhos e presenciar seu primeiro encontro, depois de arrastados a
mútuo amor pelas artimanhas do príncipe. Mas temos de falar agora
de um triste revés sucedido a Hero. O dia que devia ser o do seu
casamento só trouxe mágoa ao coração de Hero e de Leonato.
Tinha
o príncipe dom Pedro um meio-irmão, que viera com ele a Messina.
Esse irmão, por nome dom João, era um homem taciturno e
descontente, cujo espírito parecia sempre absorto em mesquinhezas.
Odiava ao príncipe seu irmão e odiava a Cláudio, por ser amigo do
príncipe. Resolveu, assim, impedir o casamento de Cláudio e Hero,
tão somente pelo perverso prazer de tornar Cláudio e o príncipe
infelizes, pois sabia que este último fazia gosto no casamento quase
tanto quanto o próprio noivo.
Para
levar a efeito seus perversos desígnios, utilizou os serviços de um
tal Borachio, homem ruim como ele, a quem acenou com uma grande
recompensa. Borachio fazia a corte a Margarida, a aia de Hero.
Sabedor disso, dom João conseguiu com que ele fizesse Margarida
prometer-lhe que lhe viria falar naquela noite, da janela do quarto
de Hero e vestida com as roupas de sua ama, quando esta se achasse
adormecida, para que Cláudio acreditasse que se tratava da própria
noiva. Tal era o objetivo da sua malvada intriga.
Dom
João foi ter com o príncipe e com Cláudio e disse-lhes que Hero
era uma imprudente rapariga, que, à meia-noite, costumava falar com
homens à janela de seu próprio quarto. Passava-se isto na véspera
do casamento, e ele se ofereceu para conduzi-los naquela noite a um
lugar de onde poderiam ouvir Hero falar com um homem à janela dos
seus aposentos. Ambos acederam, e Cláudio declarou:
— Se
eu presenciar alguma coisa que me impeça de casar com ela amanhã,
quando estivermos reunidos para o casamento, hei de desmascará-la na
presença de todos.
E
o príncipe acrescentou:
— E
eu, se te ajudei a obtê-la, me juntarei contigo para repudiá-la.
Quando
dom João os levou naquela noite para as proximidades do quarto de
Hero, eles viram Borachio postado sob a janela e Margarida debruçada
ao balcão, falando com Borachio. E, como Margarida usasse as mesmas
vestes com as quais eles tinham visto Hero, o príncipe e Cláudio
julgaram que se tratava da própria Hero.
Nada
podia comparar-se à cólera de Cláudio diante dessa pretensa
descoberta. Todo seu amor pela inocente Hero converteu-se subitamente
em ódio, e ele resolveu revelar tudo em plena igreja, no dia
seguinte, como prometera. O príncipe concordou com isso, achando que
não havia castigo demasiado severo para uma pérfida que falava com
um homem, de sua janela, à noite, na véspera do próprio casamento
com o nobre Cláudio.
No
dia seguinte, estando todos reunidos para a celebração do casamento
e achando-se Cláudio e Hero ante o sacerdote, ia este proceder à
cerimônia, quando o noivo, na mais arrebatada linguagem, proclamou a
culpa da imaculada Hero, que, pasma com as estranhas palavras que
ouvia, murmurou mansamente:
— Está
o meu senhor se sentindo bem, para falar dessa maneira?
Leonato,
no cúmulo do horror, abordou o príncipe:
— Senhor,
por que não diz nada?
— Que
posso eu dizer? Sinto-me desonrado por ter pretendido casar meu
querido amigo com uma mulher indigna. Sob minha palavra de honra,
Leonato, afirmo-lhe que eu, meu irmão e este infeliz Cláudio vimos
e ouvimos Hero falar ontem à meia-noite com um homem, da janela de
seu quarto.
Benedick,
espantado com o que ouvia, exclamou:
— E
isto é um casamento!
— Oh,
meu Deus! Que casamento... — murmurou a desolada Hero, caindo ao
chão, como que sem vida.
O
príncipe e Cláudio deixaram a igreja, sem atender ao desmaio de
Hero nem ao desespero a que haviam arrastado Leonato, de tal maneira
o ódio lhes empedernira o coração. Benedick ali permaneceu e
procurava fazer com que Hero recuperasse os sentidos, murmurando:
— Como
estará ela?
— Morta,
penso eu — replicou Beatriz, agoniada, pois queria muito bem à
prima e, sabendo a firmeza das suas virtudes, não acreditava em nada
do que haviam dito contra ela. O contrário acontecia com o velho
pai: este, sim, acreditava na vergonha da filha. E dava pena ouvi-lo
se lamentar sobre o corpo de Hero, que jazia à sua frente como um
cadáver, desejando que a filha nunca mais abrisse os olhos.
Mas
o velho padre, que era um homem avisado e conhecia a fundo a natureza
humana, tinha observado atentamente a fisionomia da moça, enquanto
esta ouvia as acusações. Vira assomarem-lhe às faces mil rubores,
e depois uma palidez de anjo cobrir o sangue da vergonha. Vira também
nos seus olhos um fogo que desmentia todas as acusações do príncipe
contra sua honra. E disse, então, ao desventurado pai:
— Chamai-me
de louco, não confieis nos meus estudos nem em minha experiência,
nem em minha idade, nem na minha reputação, se essa pobre menina
que aqui jaz não estiver sendo vítima de algum terrível equívoco.
Quando
Hero recuperou os sentidos, o padre lhe perguntou:
— Senhora,
por causa de que os homens vos acusam?
— Aqueles
que me acusam é que devem sabê-lo — replicou Hero. — Eu, por
mim, nada sei. Ó meu pai, se puderes provar que alguma vez um homem
conversou comigo em horas indevidas, ou que ontem à noite eu troquei
palavras com qualquer criatura, então repudia-me, odeia-me,
tortura-me até a morte.
— Há
— disse o padre — algum estranho equívoco da parte do príncipe
e de Cláudio.
Depois,
aconselhou Leonato a espalhar a notícia de que Hero morrera, dizendo
que o desmaio em que ela tombara daria verossimilhança ao boato.
Recomendou-lhe também que pusesse luto, que lhe erigisse um túmulo
e cumprisse todos os ritos próprios de um enterro.
— Para
que tudo isso? — indagou Leonato. — De que servirá?
— A
notícia de sua morte — replicou o padre — transformará o
escândalo em comiseração. Já é algum bem. Mas não é só o que
espero desse ardil. Quando Cláudio souber que Hero morreu por ouvir
suas palavras de acusação, a lembrança de quando ela era viva
suavemente lhe tomará conta da imaginação. E se algum dia na
verdade a amou, ele então há de chorá-la, lamentando havê-la
acusado, embora julgue a acusação verdadeira.
— Senhor
Leonato — disse então Benedick —, siga os conselhos do padre.
Embora saiba o senhor o quanto sou amigo do príncipe e de Cláudio,
dou-lhe minha palavra de que nada lhes revelarei desse segredo.
Leonato,
assim persuadido, concordou e disse amargamente:
— Estou
tão abatido que posso ser levado pelo mais frágil fio.
O
bondoso padre levou consigo Leonato e Hero para confortá-los e
consolá-los, e Beatriz e Benedick ficaram a sós. Era esse o
encontro com que tanto esperavam divertir-se os trocistas dos seus
amigos, os mesmos amigos que se achavam agora acabrunhados de aflição
e de cujo espírito todos os pensamentos de alegria pareciam banidos
para sempre.
Foi
Benedick o primeiro a falar:
— Beatriz,
estiveste a chorar todo esse tempo?
— E
chorarei ainda mais.
— Não
acredito que tua boa prima seja culpada.
— Quanto
eu seria grata — disse Beatriz — ao homem que se dispusesse a
provar a inocência dela!
— E
existe algum meio de demonstrar por ti essa dedicação? — inquiriu
Benedick. — Eu nada amo neste mundo mais do que a ti. Não te
parece isso estranho?
— Tão
estranho — retrucou Beatriz — como se eu também dissesse que
nada amo neste mundo mais do que a ti, Benedick. No entanto, embora
não acredites, não deixa de ser verdade. Nada confesso e nada nego.
Mas que pena me causa minha pobre prima!
— Por
minha espada — disse Benedick —, tu me amas, e eu juro que te
amo. Anda, ordena-me que faça alguma coisa por ti.
— Mata
Cláudio — disse Beatriz.
— Ah,
nem que me dessem o mundo inteiro! — exclamou Benedick, pois amava
ao amigo Cláudio e o julgava ludibriado em sua boa-fé.
— Pois
não é Cláudio um vilão que difamou, desonrou e desprezou minha
prima? Oh, se eu fosse um homem!
— Ouve-me,
Beatriz! — rogou Benedick.
Beatriz,
porém, nada queria ouvir em defesa de Cláudio e continuava a instar
a Benedick para que vingasse a prima:
— Falar
com um homem à janela! É coisa que se diga? Querida Hero, caluniada
e desonrada! Se eu fosse um homem, para medir-me com Cláudio! Ou se
eu ao menos tivesse algum amigo que quisesse mostrar-se homem por
mim! Mas a coragem hoje em dia se derrete em galanteios e rapapés.
Não posso ser homem para agir e morrerei de desgosto como mulher.
— Cala-te,
boa Beatriz! — disse Benedick. — Por esta mão eu juro que te
amo!
— Então,
por amor de mim, usa-a para outra coisa além de simples juramentos.
— Crês,
por tua alma, que Cláudio acusou Hero injustamente?
— Sim,
tão certo como ter eu um pensamento, ou uma alma.
— Basta.
Tens a minha palavra: vou bater-me com ele. Deixa-me beijar tua mão
e partir. Por essa mão, Cláudio há de prestar-me severas contas!
Pelo que de mim ouvires, formarás juízo a meu respeito. Vai
consolar tua prima.
Enquanto
Beatriz, com essas inflamadas palavras, estava a incitar o
amor-próprio de Benedick, aliciando-o para a causa de Hero, a ponto
de o induzir a bater-se com seu querido amigo Cláudio, Leonato
desafiava o príncipe e Cláudio a responderem com a espada pela
afronta que haviam feito à sua filha, a qual, afirmava ele, viera a
morrer de desgosto. Mas eles lhe respeitavam a idade e a mágoa e
disseram:
— Não,
não queremos que isso suceda entre nós, venerando senhor.
Nisto,
chega Benedick e também desafia Cláudio para um duelo, pela afronta
que este fizera a Hero.
Cláudio
e o príncipe disseram um para o outro:
— Foi
Beatriz quem o induziu a isso.
Cláudio,
no entanto, teria aceitado o desafio de Benedick, se nesse momento a
justiça divina não lhe houvesse deparado melhor prova da inocência
de Hero do que o incerto acaso de um duelo.
Enquanto
dom Pedro e Cláudio estavam ainda a falar do desafio de Benedick, um
magistrado trouxe Borachio preso à presença do príncipe. Borachio
fora surpreendido a contar a um dos seus companheiros o serviço que
prestara a dom João.
Confessou
ele ao príncipe, na presença de Cláudio, que fora Margarida,
vestida com as roupas da ama, quem estivera a falar com ele da
janela.
Nenhuma
dúvida mais permaneceu no espírito de Cláudio e do príncipe a
respeito da inocência de Hero. E, se alguma suspeita pairasse, logo
teria sido removida pela fuga de dom João, que, ao ver sua vilania
descoberta, escapara de Messina para evitar a justa cólera do
príncipe.
Profundamente
se abalou o coração de Cláudio, quando este reconheceu haver
acusado falsamente a Hero, que, julgava ele, morrera por causa das
suas palavras cruéis. A querida imagem dela lhe tomou conta do
espírito, tal como a vira da primeira vez em que a tinha amado.
Perguntou-lhe o príncipe se o que ele acabava de ouvir não lhe
trespassara como um ferro o coração. E respondeu Cláudio que,
enquanto Borachio falava, era como se ele estivesse a beber veneno.
Um
arrependido Cláudio pediu perdão ao velho Leonato pela injúria que
lhe fizera à filha, prometendo que, fosse qual fosse a penitência
que o ultrajado lhe impusesse, ele, pelo amor de Hero, a cumpriria.
A
pena que lhe deu Leonato foi casar-se no dia seguinte com uma prima
de Hero, que, dizia ele, era agora sua herdeira e muito se parecia
com a própria Hero. Cláudio, em vista da solene promessa que fizera
a Leonato, disse que casaria com a desconhecida, mesmo que esta fosse
uma etíope. Mas seu coração estava cheio de mágoa e ele passou a
noite a chorar de remorso, ante o túmulo que Leonato mandara erigir
para Hero.
Quando
chegou o novo dia, o príncipe acompanhou Cláudio à igreja, onde já
se achavam reunidos o sacerdote, Leonato e a sobrinha, para a
celebração das segundas núpcias. Então, Leonato apresentou
Cláudio à futura esposa, a qual trazia uma máscara, para que o
noivo não lhe visse o rosto. E Cláudio disse à dama da máscara:
— Dai-me
vossa mão, perante este santo padre. Sou vosso marido, se quiserdes
ser minha esposa.
— E
eu, quando vivia, era vossa outra esposa — disse a desconhecida e,
arrancando a máscara, revelou não ser a sobrinha, mas a filha de
Leonato, a própria Hero em pessoa.
É
de imaginar a alegria e surpresa de Cláudio, que, julgando-a morta,
mal podia acreditar em seus próprios olhos. O príncipe, igualmente
atônito, exclamou:
— Mas
é Hero, a Hero que estava morta?!
— Morta
ela estava, senhor, enquanto a calúnia vivia — replicou Leonato.
Prometeu-lhes
o padre uma explicação daquele aparente milagre para depois que
terminasse a cerimônia. E estava a casá-los quando foi interrompido
por Benedick, que desejava casar-se ao mesmo tempo com Beatriz.
Como
ela hesitasse e Benedick invocasse o amor que ela lhe dedicava, o
qual dizia ter sabido por intermédio de Hero, o caso deu lugar a
divertidas explicações. Descobriram ambos que haviam sido
arrastados a acreditar num amor recíproco que jamais existira,
tornando-se enamorados de verdade graças a uma brincadeira. Mas o
afeto que uma alegre mentira fizera germinar já estava por demais
enraizado em seus corações, para que lhes pudesse ser arrancado por
uma explicação séria. Como Benedick estava disposto a casar,
resolveu não se importar absolutamente com o que pudessem dizer a
respeito. E aceitou alegremente a brincadeira, dizendo a Beatriz que
a desposava por piedade, pois ouvira dizer que a pobre estava a
morrer de amor por ele. Beatriz, por sua vez, garantiu que acedia,
devido à grande insistência de Benedick e também em parte para lhe
salvar a vida, pois soubera que ele estava a definhar. Assim, vieram
a se casar em seguida a Cláudio e Hero.
Para
completar a história, dom João, o autor de toda a intriga, foi
apanhado e trazido a Messina. E o maior castigo desse perverso e
invejoso sujeito foi assistir, para desapontamento seu, à grande
alegria que então reinou e às festas que se celebraram no palácio
de Messina.
William Shakespeare, in Contos de Shakespeare
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