terça-feira, 1 de agosto de 2023

As rãs | 8




Quatro décadas depois, Xiangqun, o caçula do meu irmão mais velho, foi recrutado pela Aeronáutica. O mundo mudou, nada é mais como antes, muitas coisas que um dia foram sagradas a ponto de custar a vida de alguém agora são motivo de piada; muitas profissões antes admiradas por milhares de pessoas acabaram relegadas às últimas castas. Mas entrar para a escola de aviação continuava sendo um acontecimento capaz de alegrar toda a família e causar inveja nos vizinhos. Por isso meu irmão mais velho, aposentado da diretoria da Secretaria de Educação, voltou à aldeia para comemorar com um banquete com parentes e amigos.
O jantar foi montado no pátio do meu outro irmão. Puxaram um fio elétrico da sala, penduraram nele uma lâmpada potente, de um branco ofuscante, que deixou o lugar claro como dia. Juntaram duas mesas e, ao seu redor, espremeram mais de vinte cadeiras. Tivemos de sentar com os ombros encostados uns nos outros. Os pratos foram encomendados do restaurante, eram iguarias da montanha e do mar. Aves, carnes e peixes se empilhavam numa profusão de cores e temperos. Minha cunhada, arrastando um sotaque de Yantai, disse: “A comida hoje é muito simples, não precisam fazer cerimônia”. Meu pai respondeu: “Não diga isso. Lembre-se que, em 1960, nem o presidente Mao tinha a chance de comer essas coisas”. Meu sobrinho, o futuro piloto, reclamou: “Vô, pare com esse papo fora de moda”.
Depois de três rodadas de bebida, meu pai tomou a palavra: “Esta família finalmente produziu um piloto de avião. Daquela vez, seu pai inscreveu-se na seleção, mas foi desclassificado por causa de uma cicatriz na perna. Agora Xiangqun conseguiu realizar o sonho da família”.
Xiangqun torceu o nariz: “Ser piloto não é nada de mais. Quem tem capacidade mesmo vira alto funcionário ou milionário!”.
Como pode dizer uma coisa dessas!” Meu pai levantou a aguardente, enxugou-a em um gole, bateu o copo na mesa e continuou: “Um piloto é o equivalente humano de um dragão ou uma fênix. O cara que a tia de seu pai namorou, Wang Xiaoti, quando ficava de pé, tinha a coluna reta como um pinheiro; sentado, parecia firme como um sino de bronze; e quando andava, fazia o ar rodopiar atrás dele… Aquele desgraçado, se não tivesse feito a besteira de fugir para Taiwan, quem sabe seria hoje um comandante da Aeronáutica…”.
Que história é essa?”, Xiangqun perguntou, surpreso. “O marido dela não é aquele que faz bonecas de barro? De onde saiu esse piloto?”
Coisas do passado, não vamos falar disso”, disse meu irmão.
De jeito nenhum”, discordou Xiangqun, “vou perguntar a minha tia-avó. Wang Xiaoti que fugiu para Taiwan de avião? Essa é demais!”
Meu irmão aconselhou, preocupado: “Não vá atrás desse tipo de emoção. É preciso amar a pátria, sobretudo quando soldado, e mais ainda quando piloto. A pessoa pode furtar, pode roubar, pode matar, atear fogo… O que quero dizer é que jamais pode ser um traidor. Ser traidor é cair na infâmia para sempre, é jogar fora todas as perspectivas…”.
Quanto medo”, desdenhou Xiangqun, “Taiwan é parte da pátria, não vejo o menor problema em voar até lá para dar uma olhada.”
De jeito nenhum!”, gritou minha cunhada. “Se tiver essa ideia na cabeça, é melhor nem virar piloto. Posso ligar agora para o diretor Liu, do Departamento de Defesa.”
Não se preocupe, mãe”, disse meu sobrinho. “Acha que sou tão estúpido assim? Eu lá ia fazer algo pensando só em mim, sem me preocupar com vocês? Além do mais, agora o Partido Comunista e o Partido Nacionalista são aliados. Mesmo que eu chegasse lá, seria mandado de volta.”
Esse é o estilo da família Wan”, comentou meu irmão mais velho, “aquele Wang Xiaoti é um canalha, é um vilão irresponsável, que arruinou a vida da sua tia-avó!”
Estão falando de mim?” Minha tia entrou no quintal com alarde e sem cerimônia. Apertou os olhos no clarão intenso da lâmpada. Virou-se para colocar um pequeno par de óculos escuros que até tinham certo charme, e também algo de cômico. “O que querem com uma lâmpada forte dessas? Como dizia sua bisavó, mesmo comendo no escuro, ninguém enfia a comida no nariz. A eletricidade vem do carvão e o carvão vem pela mão do homem. A duras penas. Descer a três mil pés debaixo da terra é como descer ao inferno. As autoridades corruptas e os donos de minas movidos pela ganância não têm um pingo de respeito pela vida dos mineiros. Existe uma mancha de sangue em cada pedra de carvão.” Minha tia falava com a mão direita apoiada na cintura e a mão esquerda no ar, o polegar, o mindinho e o anelar dobrados, o indicador e o dedo médio juntos e apontados para a frente. Usava um casaco militar Dacron, que tinha sido bastante popular na década de 1970, com as mangas arregaçadas e o corpo bem folgado. Os cabelos brancos faziam-na parecer uma típica funcionária pública distrital no fim da Revolução Cultural. Fui tomado por uma confusão de sentimentos, veja que aparência tem hoje aquela nossa tia, que um dia foi bela como um lótus à flor da água.
Meu irmão e a esposa não sabiam se a convidavam ou não para o jantar. Foram conversar com meu pai, que aconselhou, depois de pensar por um momento: “Melhor deixar para lá, ela agora… de qualquer forma… ela não mora mais na aldeia mesmo… Deixa para depois…”.
A chegada da minha tia deixou todo mundo encabulado. Levantaram-se ao mesmo tempo e ficaram ali, sem saber como agir.
Então, passei por tantas coisas na vida e agora, na casa de meus pais, não tenho nem um lugar para sentar?”, provocou minha tia.
A frase fez todos voltarem a si. Apressaram-se em arrumar um lugar para ela sentar, atrapalhados.
Meu irmão e a mulher tentavam explicar: “A primeira pessoa que queríamos convidar era justamente a senhora. A cadeira de honra da família Wan vai ser sempre sua!”.
Vai nada!” Minha tia sentou-se ao lado do meu pai e chamou meu irmão: “Boca Grande, enquanto seu pai estiver vivo, jamais ocuparei a cadeira de honra; e mesmo depois que seu pai morrer, o lugar também não será meu! Filha casada é água despejada, não é mesmo, meu irmão?”.
Você não é uma filha qualquer, mas sim a benfeitora do nosso clã.” Apontando os presentes na mesa, meu pai continuou: “Quem, dessa geração mais nova, não veio a este mundo pelas suas mãos?”.
Um verdadeiro herói não vive de glórias passadas”, disse minha tia. “O passado… de que adianta falar nele? Vamos beber! Mas como assim? Nem copo eu tenho aqui? Trouxe a minha própria bebida!” Tirou do bolso folgado uma garrafa de Maotai e pousou-a na mesa com força. “É um Maotai de cinquenta anos, ganhei de um alto funcionário da cidade de Tinglan. A amante dele, vinte e oito anos mais jovem, queria porque queria ter um filho homem. Contaram a ela que eu sabia uma receita secreta capaz de mudar o sexo do feto, de menina para menino, e ela insistiu que eu realizasse a tal transformação. Disse a ela que isso não passava de conversa fiada, mas ela se negava a acreditar. Tinha lágrimas nos olhos, não arredava o pé, só faltava se ajoelhar na minha frente. Ela me contou que a esposa oficial teve duas meninas, e se ela, a amante, desse à luz um menino conseguiria fisgar o homem de uma vez. Ele é do tipo que valoriza os meninos e despreza as meninas, tem uma cabeça muito antiquada. Achei que um funcionário daquele nível teria outra visão, mas que nada! De qualquer maneira”, continuou ela, indignada, “o dinheiro dessas pessoas não veio pelo caminho certo, se eu não enfiar a faca neles, em quem vai ser?! Inventei uma fórmula e receitei nove doses, tinha angélica, inhame, rehmannia, alcaçuz, dessas ervas que custam só dez centavos o maço. No total, aquilo tudo não deu nem trinta iuanes. Mas cobrei dela cem por dose. Saiu toda satisfeita, entrou serelepe num carro vermelho e sumiu. Hoje à tarde, o funcionário e sua amante apareceram com o filho gordo no colo, trouxeram bebidas finas e cigarros de marca para me agradecer. Disseram que, se não fosse o meu remédio milagroso, jamais conseguiriam ter um filho tão lindo!” Riu alto, pegou o copo que meu irmão lhe oferecia, cheio de deferência, e tomou a aguardente de um só gole. “Achei muita graça”, disse ela dando um tapinha na coxa. “Esses burocratas, em geral, tiveram algum estudo, mas como podem ser tão ignorantes? Como seria possível transformar o sexo de um feto? Se eu soubesse fazer mágica, já teria ganhado o Nobel de medicina faz tempo, não é?” Bateu na mesa o copo vazio: “Sirvam mais bebida para mim! Não abram esta garrafa de Maotai, esta vamos deixar para o meu irmão”. Meu pai respondeu, atrapalhado: “Não, não, de jeito nenhum, é um desperdício alguém como eu tomar uma bebida dessas”. Minha tia pôs a garrafa de Maotai na mão do meu pai: “É meu presente para você, beba”. Examinando a fita na garrafa, meu pai quis saber, cauteloso: “Quanto custa uma garrafa dessa bebida?”. “Uns oito mil, pelo menos!”, respondeu minha cunhada. “Dizem que o preço subiu ainda mais ultimamente.” “Nossa”, exclamou meu pai, “e isso é só uma bebida? Nem cuspe de dragão, nem sangue de fênix devem custar isso tudo! O quilo do trigo custa um iuane e sessenta. Uma garrafa dessas vale cinco toneladas de trigo? Com um ano de trabalho duro, não compro nem meia garrafa.” Meu pai devolveu o presente para minha tia: “Melhor você levar de volta. Não posso beber essa aguardente, vai encurtar minha vida”. “É meu presente para você, beba”, ela insistiu. “Não saiu do meu bolso. Vai se privar em vão. É como naquele banquete dos militares japoneses em Pingdu, se deixar de comer, será em vão, comer também será em vão e, já que é em vão mesmo, ainda vai deixar de comer?” Meu pai respondeu: “Até faz sentido, mas, pensando bem, como pode um tantinho assim de líquido temperado valer tudo isso?”. “Meu querido”, minha tia disse, “você precisa entender uma coisa. Veja bem, não existe uma só pessoa que beba essa bebida pagando do próprio bolso. Quem paga do próprio bolso só bebe esta aqui”, levantou o copo e secou-o de um gole. “Você já passou dos oitenta anos, mesmo que beba o tanto que quiser, quantos anos ainda terá para isso?” Dando tapinhas no peito, declarou, abnegada: “Tendo todos esses jovens por testemunha, eu, sua irmãzinha, vou cometer um desvario: prometo que de agora em diante vou comprar Maotai para você beber! O que temos a temer? Antes, vivíamos entre a espada e a parede, com medo do lobo ali na frente e do tigre lá atrás. Só que, quanto mais medo temos, mais fantasmas vêm nos assombrar. Sirvam-me mais! Vocês não estão vendo o copo vazio? Ou estão com dó da bebida?”. “Nunca, tia, como faríamos uma coisa dessas? Pode beber à vontade.” “Pois é”, lamuriou-se, “por mais que eu queira, já não aguento beber muito, quando era mais jovem, competia com aqueles canalhas da Comuna Popular para ver quem bebia mais. Um bando de marmanjos querendo me fazer passar vexame, mas no final eu é que deixava todos eles anestesiados de tão bêbados, enfiavam-se embaixo da mesa latindo como cães! Então, meus jovens, saúde!” “Tia, coma alguma coisa.” “Não vou comer nada. Seu tio-avô bebia meio jarro de aguardente de sorgo com um talo de alho-poró e nada mais. Quem sabe beber, bebe sem comer. Mas vocês… vocês só sabem comer.” A aguardente esquentou a tia, que abriu os botões do peito. “Falei para você beber, então beba”, ela disse afagando o ombro do meu pai. “Da nossa geração, só restamos nós dois. Para que poupar o dinheiro em vez de beber e comer à vontade? Dinheiro guardado não passa de um pedaço de papel, só é dinheiro mesmo quando a gente gasta. Para alguém capacitada como eu, ganhar dinheiro não será problema. Uma pessoa pode ocupar o cargo que for, mas um dia vai ficar doente, e quando ficar doente, vai precisar me procurar para se tratar. Além do mais”, disse a tia rindo alto, “domino a técnica extraordinária de converter o sexo dos fetos, sei transformar uma menina em menino. Por uma técnica tão complexa vão me pagar sem piscar, mesmo que eu peça dez mil.” “Mas e se alguém tomar seu remédio milagroso e nascer uma menina, o que vai fazer?”, perguntou meu pai, preocupado. “Essa parte você não entendeu”, respondeu a tia. “O que é a medicina tradicional chinesa? Metade é adivinhação, é como olhar a sorte. Um olhador de sorte sabe ir enrolando os clientes, mas nunca se enrola junto com eles.”
Aproveitando o momento em que a tia acendia um cigarro, meu sobrinho Xiangqun fez a pergunta: “Vó, a senhora pode me contar um pouco sobre aquele piloto? Quem sabe um dia me dá na telha de ir a Taiwan para visitá-lo!”.
Deixe de besteira!”, disse meu irmão.
Mostre mais respeito!”, censurou a cunhada.
Minha tia fumava seu cigarro com muita experiência, fios de fumaça iam se enredando pelos cabelos alvoroçados.
Hoje, pensando bem”, secou o copo num gole e continuou, “ele me arruinou, mas ao mesmo tempo me salvou!”
Deu mais algumas tragadas no cigarro em sua mão e o descartou com um peteleco, a bituca desenhou um arco vermelho-escuro e caiu longe, em cima da parreira. “Pronto”, ela disse, “já bebi demais, chega de banquete, vou para casa. Levantou-se, corpulenta e desajeitada, e caminhou cambaleando até a porta. Corremos para segurá-la pelo braço, mas ela disse: “Acham mesmo que estou bêbada? Nada disso, não me embebedo nem com mil copos”. No portão, vimos seu marido, Hao Mão Grande, o artesão de esculturas de barro recém-condecorado como “Mestre de Arte e Artesanato Populares”, esperando em silêncio.

Mo Yan, in As rãs

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