terça-feira, 1 de agosto de 2023

Piloto de Guerra | XVI




[...]
Ah! O esquema que construirão mais tarde os historiadores! Os gráficos que inventarão para dar um significado a esse mingau! Tomarão a palavra de um ministro, a decisão de um general, a discussão de uma comissão, e farão, desse desfile de fantasmas, conversas históricas com responsabilidades e visões longínquas. Eles inventarão aceitações, resistências, pleitos cornelianos, covardias. Eu bem sei o que é um ministério evacuado. O acaso me permitiu visitar um ou dois. Logo entendi que um governo, uma vez que tenha mudado de lugar, não constitui mais um governo. É como um corpo. Se você começar a mudar também o estômago aqui, o fígado ali, as tripas acolá — essa coleção não constitui mais um organismo. Vivi vinte minutos no Ministério da Aeronáutica. Pois bem, um ministro exerce uma ação sobre um oficial. Uma ação miraculosa. Porque um fio de campainha liga ainda o ministro ao oficial. Um fio de campainha intacto. O ministro aperta o botão e o oficial vem.
Isso é um êxito.
Meu carro, pede o ministro.
Sua autoridade para aí. Ele manda o oficial fazer o exercício. Mas o oficial ignora se existe na terra um automóvel de ministro. Nenhum fio elétrico liga o oficial a nenhum chofer de automóvel. O chofer está perdido em algum lugar do universo. O que podem saber da guerra aqueles que governam? Para nós seriam necessários oito dias, de tão impossíveis que são as ligações, para desencadear um bombardeio sobre uma divisão blindada que encontrássemos. Que boato um governo pode receber desse país que se estripa? As notícias avançam num ritmo de vinte quilômetros por dia. Os telefones estão sobrecarregados ou quebrados, e não têm o poder de transmitir, com a real densidade, o Ser que por enquanto se decompõe. O governo está imerso no vazio: um vazio polar. De tempos em tempos lhe chegam chamados de desesperada urgência, mas abstratos, reduzidos a três linhas. Como os responsáveis saberiam se dez milhões de franceses já não morreram de fome? E esse apelo de dez milhões de homens cabe numa frase. É preciso uma frase para dizer:
Reunião às quatro horas na casa de X.
Ou:
Dizem que dez milhões de homens morreram.
Ou:
Blois está em chamas.
Ou:
Encontramos seu chofer.
Tudo isso no mesmo plano. Na hora. Dez milhões de homens. O carro. O exército do Leste. A civilização ocidental. Encontramos o chofer. A Inglaterra. O pão. Que horas são?
Eu lhe dou sete letras. São sete letras da Bíblia. Reconstitua-me a Bíblia com isso!
Os historiadores esquecerão o real. Eles inventarão seres pensantes, ligados por fibras misteriosas a um universo exprimível, dispondo de sólidas visões de conjunto, e pensando decisões graves segundo as quatro regras da lógica cartesiana. Eles distinguirão as potências do bem das potências do mal. Os heróis dos traidores. Mas eu farei uma simples pergunta:
É preciso, para trair, ser responsável por alguma coisa, gerir alguma coisa, agir sobre alguma coisa, conhecer alguma coisa. É dar hoje prova de talento. Por que não se condecoram os traidores?

Já a paz se mostra um pouco em toda parte. Não é uma dessas pazes bem delineadas, que sucedem, como etapas novas da História, as guerras claramente concluídas por tratado. Trata-se de um período sem nome, que é o fim de todas as coisas. Um fim que não acabará de findar. Trata-se de um pântano onde chafurda pouco a pouco todo impulso. Não se sente a aproximação de uma conclusão boa ou má. Muito ao contrário. Entra-se pouco a pouco no apodrecimento de um provisório que parece a eternidade. Nada se concluirá, pois não há mais por onde se segurar este país, como se seguraria uma afogada pelo cabelo. Tudo está desfeito. E o esforço mais patético só traz uma mecha de cabelo. A paz que vem não é fruto de uma decisão tomada pelo homem. Ela espalha-se como lepra.
Aí, abaixo de mim, nessas estradas em que a caravana se deteriora, onde os blindados alemães matam ou dão de beber, é como naqueles territórios lodosos onde terra e água se confundem. A paz, que já se mistura à guerra, apodrece a guerra. Um de meus amigos, Léon Werth, ouviu na estrada uma enorme revelação, que narrará num grande livro. À esquerda da estrada estão os alemães, à direita, os franceses. Entre ambos, o turbilhão lento do êxodo. Centenas de mulheres e crianças que se livram, como podem, de seus carros em chamas. E, como um tenente de artilharia que se encontra, sem querer, preso no engarrafamento, tenta colocar na bateria uma peça de setenta e cinco, contra a qual o inimigo atira — e como o inimigo erra a peça, mas arrebenta a estrada, mães vão a esse tenente que, molhado de suor, obstinado por seu incompreensível dever, tenta salvar uma posição que não aguentará vinte minutos (eles são aqui doze homens!).
Vão embora! Vão embora! Vocês são covardes!
O tenente e os homens se vão. Em todo lugar deparam com esses problemas de paz. É preciso, com certeza, que os pequenos não sejam massacrados na estrada. Entretanto, cada soldado que atira deve atirar nas costas de uma criança. Cada caminhão que avança, ou tenta avançar, arrisca condenar um povo. Pois, avançando contra a corrente, congestiona inexoravelmente uma estrada inteira.
— … vocês são loucos! Deixem-nos passar! As crianças estão morrendo!
Nós fazemos a guerra…
Que guerra? Onde vocês estão fazendo guerra? Em três dias, nessa direção, vocês avançarão seis quilômetros!
São alguns soldados perdidos em seu caminhão, em marcha para um encontro que, há horas, sem dúvida, não tem mais objeto. Mas eles estão enfiados em seu dever elementar.
Fazemos a guerra.
Fariam melhor se nos recolhessem! É desumano!
Uma criança berra.
E aquela?
Aquela não grita mais. Não tem leite, não tem gritos…
Nós fazemos a guerra.
Eles repetem sua fórmula com uma estupidez desesperada.
Mas vocês não vão achar nunca essa guerra! Vão morrer aqui conosco!
Fazemos a guerra…
Eles não sabem mais muito bem o que dizem.
Eles não sabem mais muito bem se fazem a guerra. Nunca viram o inimigo. Andam de caminhão para alvos mais fugidios que miragens. Não encontram senão essa paz de maceração.
Como a desordem aglutinou tudo, eles desceram do caminhão. Cercam-nos. Vocês têm água? Eles compartilham então sua água.
Pão?
Eles partilham seu pão.
Vão deixá-la morrer?
Naquele carro quebrado num buraco, há uma mulher que geme.
Tiram-na. Enfiam-na dentro do caminhão.
E essa criança?
Colocam também a criança no caminhão.
E aquela ali que vai parir?
Enfiam aquela ali.
Depois, aquela outra, porque está chorando.
Depois de uma hora de esforços, desencalharam o caminhão. Viraram-no para o sul. Como bloco errático, ele seguirá, arrastado pelo rio de civis. Os soldados foram convertidos à paz. Porque não encontravam a guerra.
Porque a musculatura da guerra é invisível. Porque o golpe que se dá, é uma criança que recebe. Porque no encontro da guerra, alvejam mulheres em trabalho de parto. Porque é tão inútil pretender comunicar uma informação ou receber uma ordem quanto entabular uma discussão com Sirius. Não há mais Exército. Só restam homens.
Eles estão convertidos à paz. São encarregados pela força das coisas como mecânicos, médicos, guardadores de rebanho, padioleiros. Eles consertam os carros daquela pobre gente que não sabe tratar sua sucata. E esses soldados ignoram, no esforço que fazem, se são heróis, ou se estão passíveis do conselho de guerra. Eles não se surpreenderiam muito se fossem condecorados. Nem de serem alinhados contra uma parede com doze balas no crânio. Nem de serem desmobilizados. Nada os surpreenderia. Eles já ultrapassaram há muito os limites do espanto.
Há um imenso mingau onde nenhuma ordem, nenhum movimento, nenhuma novidade, nenhuma onda do que quer que seja jamais se propagará por mais de três quilômetros. E, assim como as vilas desembocam umas após as outras no esgoto comum, esses caminhões militares absorvidos pela paz convertem-se um a um à paz. Esses punhados de homens que teriam perfeitamente aceitado a morte, mas não se coloca a eles o problema de morrer, aceitam os deveres que encontram e consertam essa padiola feita de carrinho de mão, onde três religiosas empilharam sabe Deus por qual peregrinação, para Deus sabe qual refúgio de conto de fadas, doze crianças ameaçadas de morte.

Assim como Alias, quando recolocava no coldre o seu revólver, não julgarei os soldados que renunciam. Qual sopro os animaria? De onde vem a onda que os atingiria? Onde está o rosto que os uniria? Eles não sabem nada do resto do mundo, senão por esses boatos sempre dementes que, germinados na estrada a três ou quatro quilômetros, sob a forma de hipóteses bizarras, tomaram, propagando-se lentamente através desses três quilômetros de lama, um caráter de afirmação: “Os Estados Unidos entraram na guerra. O papa se suicidou. Os aviões russos incendiaram Berlim. O Armistício foi assinado há oito dias. Hitler desembarcou na Inglaterra”.
Não há pastor para as mulheres ou as crianças, tampouco para os homens. O general aborda seu ordenança. O ministro aborda seu oficial. E talvez ele possa, com sua eloquência, transfigurá-lo. Alias aborda seus tripulantes. E ele pode obter deles o sacrifício de suas vidas. O sargento do caminhão militar aborda os doze homens que dependem dele. Mas é impossível unir-se a qualquer outra coisa. Supondo-se que um chefe genial, capaz, pelo milagre de uma olhada sobre o conjunto, conceba um plano suscetível de salvar-nos, esse chefe não disporá, para manifestar-se, senão de um fio de campainha de vinte metros. E, como massa de manobra para vencer, disporá do oficial, se ainda subsistir um oficial na outra ponta do fio.
Quando vão ao acaso das estradas, esses soldados esparsos que fazem parte de unidades deslocadas, esses homens que são apenas desempregados de guerra, eles não mostram aquele desespero que se empresta ao vencido patriota. Eles desejam confusamente a paz, é certo. Mas a paz, a seus olhos, não representa nada além do termo dessa inominável bagunça e o retorno a uma identidade, a mais humilde que seja. Um velho sapateiro sonha que martelava pregos. E martelando pregos, forjava o mundo.
E se eles seguem em frente, é pelo efeito da incoerência geral que os separa uns dos outros, e não pelo horror da morte. Eles não têm horror de nada: estão vazios.

Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra

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