[...]
Ah!
O esquema que construirão mais tarde os historiadores! Os gráficos
que inventarão para dar um significado a esse mingau! Tomarão a
palavra de um ministro, a decisão de um general, a discussão de uma
comissão, e farão, desse desfile de fantasmas, conversas históricas
com responsabilidades e visões longínquas. Eles inventarão
aceitações, resistências, pleitos cornelianos, covardias. Eu bem
sei o que é um ministério evacuado. O acaso me permitiu visitar um
ou dois. Logo entendi que um governo, uma vez que tenha mudado de
lugar, não constitui mais um governo. É como um corpo. Se você
começar a mudar também o estômago aqui, o fígado ali, as tripas
acolá — essa coleção não constitui mais um organismo. Vivi
vinte minutos no Ministério da Aeronáutica. Pois bem, um ministro
exerce uma ação sobre um oficial. Uma ação miraculosa. Porque um
fio de campainha liga ainda o ministro ao oficial. Um fio de
campainha intacto. O ministro aperta o botão e o oficial vem.
Isso
é um êxito.
— Meu
carro, pede o ministro.
Sua
autoridade para aí. Ele manda o oficial fazer o exercício. Mas o
oficial ignora se existe na terra um automóvel de ministro. Nenhum
fio elétrico liga o oficial a nenhum chofer de automóvel. O chofer
está perdido em algum lugar do universo. O que podem saber da guerra
aqueles que governam? Para nós seriam necessários oito dias, de tão
impossíveis que são as ligações, para desencadear um bombardeio
sobre uma divisão blindada que encontrássemos. Que boato um governo
pode receber desse país que se estripa? As notícias avançam num
ritmo de vinte quilômetros por dia. Os telefones estão
sobrecarregados ou quebrados, e não têm o poder de transmitir, com
a real densidade, o Ser que por enquanto se decompõe. O governo está
imerso no vazio: um vazio polar. De tempos em tempos lhe chegam
chamados de desesperada urgência, mas abstratos, reduzidos a três
linhas. Como os responsáveis saberiam se dez milhões de franceses
já não morreram de fome? E esse apelo de dez milhões de homens
cabe numa frase. É preciso uma frase para dizer:
— Reunião
às quatro horas na casa de X.
Ou:
— Dizem
que dez milhões de homens morreram.
Ou:
— Blois
está em chamas.
Ou:
— Encontramos
seu chofer.
Tudo
isso no mesmo plano. Na hora. Dez milhões de homens. O carro. O
exército do Leste. A civilização ocidental. Encontramos o chofer.
A Inglaterra. O pão. Que horas são?
Eu
lhe dou sete letras. São sete letras da Bíblia. Reconstitua-me a
Bíblia com isso!
Os
historiadores esquecerão o real. Eles inventarão seres pensantes,
ligados por fibras misteriosas a um universo exprimível, dispondo de
sólidas visões de conjunto, e pensando decisões graves segundo as
quatro regras da lógica cartesiana. Eles distinguirão as potências
do bem das potências do mal. Os heróis dos traidores. Mas eu farei
uma simples pergunta:
— É
preciso, para trair, ser responsável por alguma coisa, gerir alguma
coisa, agir sobre alguma coisa, conhecer alguma coisa. É dar hoje
prova de talento. Por que não se condecoram os traidores?
Já
a paz se mostra um pouco em toda parte. Não é uma dessas pazes bem
delineadas, que sucedem, como etapas novas da História, as guerras
claramente concluídas por tratado. Trata-se de um período sem nome,
que é o fim de todas as coisas. Um fim que não acabará de findar.
Trata-se de um pântano onde chafurda pouco a pouco todo impulso. Não
se sente a aproximação de uma conclusão boa ou má. Muito ao
contrário. Entra-se pouco a pouco no apodrecimento de um provisório
que parece a eternidade. Nada se concluirá, pois não há mais por
onde se segurar este país, como se seguraria uma afogada pelo
cabelo. Tudo está desfeito. E o esforço mais patético só traz uma
mecha de cabelo. A paz que vem não é fruto de uma decisão tomada
pelo homem. Ela espalha-se como lepra.
Aí,
abaixo de mim, nessas estradas em que a caravana se deteriora, onde
os blindados alemães matam ou dão de beber, é como naqueles
territórios lodosos onde terra e água se confundem. A paz, que já
se mistura à guerra, apodrece a guerra. Um de meus amigos, Léon
Werth, ouviu na estrada uma enorme revelação, que narrará num
grande livro. À esquerda da estrada estão os alemães, à direita,
os franceses. Entre ambos, o turbilhão lento do êxodo. Centenas de
mulheres e crianças que se livram, como podem, de seus carros em
chamas. E, como um tenente de artilharia que se encontra, sem querer,
preso no engarrafamento, tenta colocar na bateria uma peça de
setenta e cinco, contra a qual o inimigo atira — e como o inimigo
erra a peça, mas arrebenta a estrada, mães vão a esse tenente que,
molhado de suor, obstinado por seu incompreensível dever, tenta
salvar uma posição que não aguentará vinte minutos (eles são
aqui doze homens!).
— Vão
embora! Vão embora! Vocês são covardes!
O
tenente e os homens se vão. Em todo lugar deparam com esses
problemas de paz. É preciso, com certeza, que os pequenos não sejam
massacrados na estrada. Entretanto, cada soldado que atira deve
atirar nas costas de uma criança. Cada caminhão que avança, ou
tenta avançar, arrisca condenar um povo. Pois, avançando contra a
corrente, congestiona inexoravelmente uma estrada inteira.
— … vocês
são loucos! Deixem-nos passar! As crianças estão morrendo!
— Nós
fazemos a guerra…
— Que
guerra? Onde vocês estão fazendo guerra? Em três dias, nessa
direção, vocês avançarão seis quilômetros!
São
alguns soldados perdidos em seu caminhão, em marcha para um encontro
que, há horas, sem dúvida, não tem mais objeto. Mas eles estão
enfiados em seu dever elementar.
— Fazemos
a guerra.
— Fariam
melhor se nos recolhessem! É desumano!
Uma
criança berra.
— E
aquela?
Aquela
não grita mais. Não tem leite, não tem gritos…
— Nós
fazemos a guerra.
Eles
repetem sua fórmula com uma estupidez desesperada.
— Mas
vocês não vão achar nunca essa guerra! Vão morrer aqui conosco!
— Fazemos
a guerra…
Eles
não sabem mais muito bem o que dizem.
Eles
não sabem mais muito bem se fazem a guerra. Nunca viram o inimigo.
Andam de caminhão para alvos mais fugidios que miragens. Não
encontram senão essa paz de maceração.
Como
a desordem aglutinou tudo, eles desceram do caminhão. Cercam-nos.
Vocês têm água? Eles compartilham então sua água.
— Pão?
Eles
partilham seu pão.
— Vão
deixá-la morrer?
Naquele
carro quebrado num buraco, há uma mulher que geme.
Tiram-na.
Enfiam-na dentro do caminhão.
— E
essa criança?
Colocam
também a criança no caminhão.
— E
aquela ali que vai parir?
Enfiam
aquela ali.
Depois,
aquela outra, porque está chorando.
Depois
de uma hora de esforços, desencalharam o caminhão. Viraram-no para
o sul. Como bloco errático, ele seguirá, arrastado pelo rio de
civis. Os soldados foram convertidos à paz. Porque não encontravam
a guerra.
Porque
a musculatura da guerra é invisível. Porque o golpe que se dá, é
uma criança que recebe. Porque no encontro da guerra, alvejam
mulheres em trabalho de parto. Porque é tão inútil pretender
comunicar uma informação ou receber uma ordem quanto entabular uma
discussão com Sirius. Não há mais Exército. Só restam homens.
Eles
estão convertidos à paz. São encarregados pela força das coisas
como mecânicos, médicos, guardadores de rebanho, padioleiros. Eles
consertam os carros daquela pobre gente que não sabe tratar sua
sucata. E esses soldados ignoram, no esforço que fazem, se são
heróis, ou se estão passíveis do conselho de guerra. Eles não se
surpreenderiam muito se fossem condecorados. Nem de serem alinhados
contra uma parede com doze balas no crânio. Nem de serem
desmobilizados. Nada os surpreenderia. Eles já ultrapassaram há
muito os limites do espanto.
Há
um imenso mingau onde nenhuma ordem, nenhum movimento, nenhuma
novidade, nenhuma onda do que quer que seja jamais se propagará por
mais de três quilômetros. E, assim como as vilas desembocam umas
após as outras no esgoto comum, esses caminhões militares
absorvidos pela paz convertem-se um a um à paz. Esses punhados de
homens que teriam perfeitamente aceitado a morte, mas não se coloca
a eles o problema de morrer, aceitam os deveres que encontram e
consertam essa padiola feita de carrinho de mão, onde três
religiosas empilharam sabe Deus por qual peregrinação, para Deus
sabe qual refúgio de conto de fadas, doze crianças ameaçadas de
morte.
Assim
como Alias, quando recolocava no coldre o seu revólver, não
julgarei os soldados que renunciam. Qual sopro os animaria? De onde
vem a onda que os atingiria? Onde está o rosto que os uniria? Eles
não sabem nada do resto do mundo, senão por esses boatos sempre
dementes que, germinados na estrada a três ou quatro quilômetros,
sob a forma de hipóteses bizarras, tomaram, propagando-se lentamente
através desses três quilômetros de lama, um caráter de afirmação:
“Os Estados Unidos entraram na guerra. O papa se suicidou. Os
aviões russos incendiaram Berlim. O Armistício foi assinado há
oito dias. Hitler desembarcou na Inglaterra”.
Não
há pastor para as mulheres ou as crianças, tampouco para os homens.
O general aborda seu ordenança. O ministro aborda seu oficial. E
talvez ele possa, com sua eloquência, transfigurá-lo. Alias aborda
seus tripulantes. E ele pode obter deles o sacrifício de suas vidas.
O sargento do caminhão militar aborda os doze homens que dependem
dele. Mas é impossível unir-se a qualquer outra coisa. Supondo-se
que um chefe genial, capaz, pelo milagre de uma olhada sobre o
conjunto, conceba um plano suscetível de salvar-nos, esse chefe não
disporá, para manifestar-se, senão de um fio de campainha de vinte
metros. E, como massa de manobra para vencer, disporá do oficial, se
ainda subsistir um oficial na outra ponta do fio.
Quando
vão ao acaso das estradas, esses soldados esparsos que fazem parte
de unidades deslocadas, esses homens que são apenas desempregados de
guerra, eles não mostram aquele desespero que se empresta ao vencido
patriota. Eles desejam confusamente a paz, é certo. Mas a paz, a
seus olhos, não representa nada além do termo dessa inominável
bagunça e o retorno a uma identidade, a mais humilde que seja. Um
velho sapateiro sonha que martelava pregos. E martelando pregos,
forjava o mundo.
E
se eles seguem em frente, é pelo efeito da incoerência geral que os
separa uns dos outros, e não pelo horror da morte. Eles não têm
horror de nada: estão vazios.
Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra
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