Ulisses e as sereias (1867), de Léon Belly
O
que se pode tirar de todas essas definições de beleza oferecidas
pela ciência da estética? Se pusermos de lado as definições
totalmente imprecisas, que não cobrem a ideia de arte e supõem que
a beleza consiste ora em utilidade, ora em conveniência, ora em
simetria, ou em ordem, proporcionalidade, elegância, ou em harmonia
das partes, ou em unidade dentro da diversidade, ou em várias
combinações desses princípios todos, as definições estéticas da
beleza se resumem a duas visões fundamentais. Uma, de que a beleza é
algo que existe em si mesmo, uma manifestação do absolutamente
perfeito — ideia, espírito, vontade, Deus. Outra, de que a beleza
é um certo prazer que experimentamos, que não tem o benefício
pessoal como seu objetivo.
A
primeira definição foi adotada por Fichte, Schelling, Hegel,
Schopenhauer e pelos franceses filosofantes — Cousin, Jouffroy,
Ravaisson et al., para não mencionar os filósofos estetas de
segunda linha.
A
mesma definição objetivo-mística de beleza é sustentada pela
maior parte das pessoas instruídas de nossa época. É uma
compreensão da beleza muito disseminada, especialmente entre os da
geração mais velha.
A
segunda definição de beleza, como um certo prazer que recebemos e
que não tem nenhum benefício pessoal como objetivo, é disseminada
principalmente entre os estetas ingleses e compartilhada pela outra
parte, geralmente mais jovem, de nossa sociedade.
Assim,
existem (e não poderia ser de outra maneira) apenas duas definições
de beleza: uma, objetiva e mística, que mistura esse conceito com a
mais alta perfeição, com Deus — uma definição fantástica que
não se baseia em coisa alguma; a outra, ao contrário, uma definição
subjetiva bem simples e clara, que considera que a beleza é aquilo
que é agradável (não acrescento “sem objetivo ou benefício”,
porque a palavra agradável em si implica essa ausência de qualquer
consideração de vantagem).
Por
um lado, a beleza é entendida como algo místico e muito exaltado,
mas, infelizmente, muito indefinido, e que abrange, consequentemente,
a filosofia, a religião e a própria vida, como em Schelling, Hegel
e seus seguidores alemães e franceses. Ou, por outro lado, conforme
a definição de Kant e seus seguidores, a beleza é somente um tipo
particular de prazer desinteressado que recebemos. Neste caso, o
conceito de beleza, embora aparentemente muito claro, infelizmente é
também impreciso, porque se expande na outra direção — ou seja,
ele inclui o prazer derivado do beber, comer, tocar uma pele macia
etc., como se admite em Guyau, Kralik et al.
É
verdade que, seguindo o desenvolvimento da doutrina referente à
beleza, pode-se observar que a princípio, a partir da época em que
a estética emergiu como ciência, a definição metafísica da
beleza prevalecia, ao passo que quanto mais nos aproximamos de nossa
própria época, mais emerge uma definição prática, que
recentemente adquiriu um aspecto fisiológico, de forma que chegamos
mesmo a estetas como Véron e Sully, que tentam prescindir totalmente
do conceito de beleza. Mas tais estetas têm muito pouco sucesso, e a
maioria do público, bem como dos artistas e estudiosos, agarra-se
firmemente ao conceito de beleza tal como definido pela maior parte
dos sistemas estéticos — ou seja, de que ela é algo místico ou
metafísico, ou de que é um tipo especial de prazer.
O
que é, essencialmente, esse conceito de beleza ao qual as pessoas do
nosso círculo e época se agarram tão teimosamente para a definição
de arte?
Chamamos
de beleza, no sentido subjetivo, aquilo que nos traz um certo tipo de
prazer. No sentido objetivo, chamamos de beleza algo absolutamente
perfeito que existe fora de nós. Mas, como reconhecemos o
absolutamente perfeito que existe fora de nós e o percebemos como
tal somente porque recebemos um certo tipo de prazer da sua
manifestação, significa que a definição objetiva não é senão a
subjetiva expressa diferentemente. De fato, ambas as noções de
beleza se reduzem a um certo tipo de prazer que recebemos, o que
significa que reconhecemos como beleza aquilo que nos agrada sem
despertar nosso desejo. Em tal situação, pareceria natural para a
ciência da arte não se contentar com uma definição de arte
baseada na beleza — isto é, no que é agradável — e buscar uma
definição geral, aplicável a todas as obras artísticas, com base
na qual seria possível solucionar a questão do que pertence ou não
pertence à arte. Mas como o leitor pode ver pelas passagens que
citei de livros sobre estética, e pode ver mais claramente ainda nas
próprias obras, se se der ao trabalho de lê-las, não existe tal
definição. Todas as tentativas de definir a beleza absoluta em si
mesma — como imitação da natureza, como propósito, como
correspondência de partes, simetria, harmonia, unidade na
diversidade, e assim por diante — ou não definem nada ou definem
somente certas características de certas obras de arte, e estão
longe de abranger tudo o que todas as pessoas sempre consideraram e
ainda consideram ser arte.
Uma
definição da arte não existe; as existentes, tanto as metafísicas
quanto as práticas, resumem-se a uma e mesma definição subjetiva,
que, por mais estranho que possa ser, é a visão da arte como
manifestação da beleza, e da beleza como aquilo que agrada (sem
suscitar desejo). Muitos estetas perceberam a inadequação e a
instabilidade de uma tal definição e, com o propósito de dar-lhe
substância, perguntaram a si mesmos o que é agradável e por quê,
transferindo assim a questão da beleza para a questão do gosto,
como fizeram Hutcheson, Voltaire, Diderot et al. Mas (como o leitor
pode ver tanto pela história da estética como pela experiência) as
tentativas de definir o gosto não levam a lugar algum, e não há
nem poderá haver nunca uma explicação de por que uma coisa é
agradável a um homem e não o é a outro, e vice-versa. Assim sendo,
a estética existente, como um todo, não consiste em algo que se
esperaria de uma atividade intelectual que chama a si própria de
ciência — a saber, definir as propriedades e leis da arte ou do
belo (se é este o conteúdo da arte), ou definir as propriedades do
gosto (se é este que decide a questão da arte e o seu valor), e
então, com base nessas leis, reconhecer como arte as obras que se
ajustam a elas e rejeitar as que não se ajustam —, mas, em vez
disso, ela consiste em primeiro reconhecer um certo tipo de trabalho
como bom porque nos agrada e, então, construir uma teoria da arte
que inclua todas as obras consideradas agradáveis por um certo
círculo de pessoas. Existe um cânone artístico segundo o qual as
obras favoritas do nosso círculo são reconhecidas como arte
(Fídias, Sófocles, Homero, Ticiano, Rafael, Bach, Beethoven, Dante,
Shakespeare, Goethe et al.), e os juízos estéticos devem ser
tais que possam abarcar todas elas. Não é difícil achar na
literatura sobre estética julgamentos do valor e do significado da
arte com base não em leis conhecidas, segundo as quais consideramos
este ou aquele objeto bom ou mau, mas, sim, se o objeto se conforma
ao cânone artístico que estabelecemos. Um dia desses eu estava
lendo um livro muito simpático de Volkelt. Discutindo as exigências
de moralidade em obras de arte, o autor diz sem rodeios que é errado
trazer para a arte qualquer exigência moral, e como prova aponta
que, se isso fosse admitido, Romeu e Julieta, de Shakespeare,
e Mestre Guilherme, de Goethe, não seriam classificados como
boa arte. Como essas duas obras pertencem ao cânone artístico, tal
exigência seria incorreta. Deve-se encontrar, portanto, uma
definição de arte que permita que essas obras caibam dentro dela.
No lugar da exigência de moralidade, Volkelt postula como base da
arte a existência de significação (Bedeutungsvolles).
Todos
os sistemas estéticos existentes são construídos segundo esse
plano. Em vez de dar uma definição de arte verdadeira e, então,
conforme uma obra caiba ou não nessa definição, julgar o que é
arte e o que não é, um certo grupo de obras consideradas agradáveis
por pessoas de um determinado círculo é reconhecido como arte, e
uma definição de arte que inclua todas elas é então inventada.
Recentemente me deparei com uma notável confirmação desse método
em um livro muito bom, History of Nineteenth Century Art
[História da arte do século XIX], de Muther. Propondo-se a
descrever os pré-rafaelitas, os decadentes e os simbolistas, que já
foram recebidos no cânone da arte, a obra não apenas não ousa
denunciar essa tendência, mas faz um grande esforço para expandir
sua estrutura de forma a incluir aí os acima citados, que lhe
parecem ser uma reação legítima aos excessos do naturalismo.
Quaisquer que sejam os desatinos cometidos na arte, uma vez que são
aceitos na camada superior de uma sociedade, elabora-se imediatamente
uma teoria para explicar e legitimar esses desatinos, como se nunca
tivesse havido época na história em que certos círculos
excepcionais de pessoas tivessem aceitado e aprovado arte falsa, feia
e sem significado, que não deixou traço e foi totalmente esquecida
mais tarde. E podemos ver, pelo que está acontecendo na arte do
nosso círculo, a que grau de feiura e falta de sentido a arte pode
chegar, especialmente quando, como agora, ela sabe que pode ser
considerada infalível.
Assim,
a teoria da arte baseada na beleza, exposta por estetas e professada
em contornos vagos pelo público, não vai além de estabelecer que é
bom aquilo que foi e é considerado agradável por nós — isto é,
por um certo círculo de pessoas.
Para
definir qualquer atividade humana, uma pessoa precisa entender seu
significado e importância. E para isso é necessário antes de tudo
examinar essa atividade em si mesma, como algo dependente de suas
próprias causas e efeitos, e não com relação ao prazer que
recebemos dela.
Mas
se aceitarmos que o objetivo de qualquer atividade é meramente nosso
próprio prazer, e a definirmos apenas por essa razão, essa
definição obviamente será falsa. Isso é o que aconteceu com a
definição de arte. Pois, ao analisar a questão do alimento, não
ocorreria a ninguém ver a importância do alimento no prazer que
obtemos ao comê-lo. Todo mundo entende que a satisfação do nosso
gosto não pode de modo algum servir de base para definir os méritos
do alimento, e que portanto não temos direito de supor que jantares
com pimenta-de-caiena, queijo Limburger, álcool, e assim por diante,
aos quais estamos acostumados e dos quais gostamos, representem o
melhor alimento para a humanidade.
Exatamente
da mesma maneira, a beleza, ou o que nos agrada, não pode de modo
algum servir de base para definir a arte, assim como uma série de
objetos que nos dão prazer não pode ser exemplo do que a arte
deveria ser.
Ver
o objetivo e propósito da arte no prazer que obtemos dela é o mesmo
que atribuir o objetivo e a importância do alimento ao prazer que
temos ao comê-lo, como pessoas que estão no mais baixo nível de
desenvolvimento moral (selvagens, por exemplo).
Da
mesma forma que elas não podem perceber o verdadeiro significado do
comer, também as pessoas que pensam que o objetivo da arte é o
prazer não podem saber seu significado e propósito, porque atribuem
a uma atividade que tem significado em relação a outros fenômenos
da vida o objetivo falso e exclusivo do prazer. As pessoas
compreendem que o significado do comer é a nutrição do corpo
somente quando cessam de considerar que o prazer é o objetivo dessa
atividade. Reconhecer como objetivo da arte a beleza, ou o tipo de
prazer que se obtém dela, não apenas não contribui para definir o
que a arte é, como, ao contrário, ao transferir a questão para um
campo bastante estranho a ela — para discussões metafísicas,
psicológicas, fisiológicas e mesmo históricas de por que tal obra
é agradável para alguns e tal obra não é, ou é agradável a
outros — torna essa definição impossível. E justamente da mesma
forma que discutir por que uma pessoa gosta de peras e outra gosta de
carne também não ajuda a definir o que é a essência da nutrição,
a solução das questões de gosto na arte (às quais se reduzem
involuntariamente todas as discussões sobre o assunto) não só não
contribui para entender o que constitui essa atividade humana
especial que chamamos arte, como torna esse entendimento
completamente impossível.
À
questão “O que é essa arte à qual são oferecidos em sacrifício
o trabalho de milhões de pessoas, a própria vida das pessoas e
mesmo a moralidade?”, os sistemas estéticos existentes dão
respostas que se reduzem, todas, a dizer que o objetivo da arte é a
beleza, a qual é conhecida pelo prazer que dá, e que esse prazer é
uma coisa boa e importante. Ou seja, que o prazer é bom porque é
prazer. De sorte que o que é considerado a definição da arte não
o é em absoluto. Trata-se apenas de um ardil para justificar os
sacrifícios que são oferecidos pelas pessoas em nome dessa suposta
arte, assim como o prazer egoísta e a imoralidade da arte existente.
E, portanto, por mais estranho que seja dizê-lo, apesar das
montanhas de livros escritos sobre o assunto, até hoje não foi
feita uma definição precisa de arte. A razão disso é que o
conceito de beleza foi colocado na base do conceito de arte.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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