Dia
02 de fevereiro de 2009
Terá
o digníssimo procurador público de Badalona lido Os miseráveis
de Victor Hugo, ou pertence àquela parte da humanidade que crê que
a vida se aprende nos códigos? A pergunta é obviamente retórica e,
se a faço, é só para facilitar-me a entrada na matéria. Assim, o
leitor ilustrado já ficou a saber que o dito procurador poderia ser,
com inteira justiça, uma das figuras que Victor Hugo plantou no seu
livro, a de acusador público. O protagonista da história, Jean
Valjean (soa-lhe este nome, senhor procurador?), foi acusado de ter
roubado (e roubou mesmo) um pão, crime que lhe custou quase uma vida
de reclusão por via de sucessivas condenações motivadas por
repetidas tentativas de fuga, mais logradas umas que outras. Jean
Valjean sofria de uma enfermidade que ataca muito a população dos
cárceres, a ânsia de liberdade. O livro é enorme, daqueles de que
hoje se diz terem páginas a mais, e certamente não interessará ao
senhor procurador que provavelmente já não está em idade de o ler:
Os miseráveis são para ler na juventude, depois disso vem o
cinismo e já são poucos os adultos que tenham paciência para
interessar-se pela miséria e pelas desventuras de Jean Valjean. Com
tudo isto, também pode suceder que eu esteja equivocado: talvez o
senhor procurador tenha lido mesmo Os miseráveis… Se assim é,
permita-me uma pergunta: como foi que ousou (se o verbo lhe parecer
demasiado forte use qualquer dos equivalentes) pedir um ano e meio de
prisão para o mendigo que em Badalona tentou roubar uma baguette,
e digo tentou porque só conseguiu levar metade? Como foi? Será
porque, em vez de um cérebro, tem no seu crânio, como único
mobiliário, um código? Aclare-me, por favor, para que eu comece já
a preparar a minha defesa se alguma vez vier a ter pela frente um
exemplar da sua espécie.
José Saramago, in O caderno
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