[...]
O
período da regência estava com os dias contados. Não porque a
pontuação quisesse pôr-lhe um ponto final, mas porque o prazo
máximo de duração determinado por lei se aproximava do fim e o Rei
começava a falar em reassumir o comando do país – apesar do
empenho da Rainha em mantê-lo afastado, já que isso dava a ela mais
liberdade de movimentos tanto para exercer o poder nos bastidores
como para levar adiante planos ambiciosos para o futuro, planos que
não incluíam o marido. O Regente parecia estar com os dias mais
contados ainda: autoritário e elitista, insensível tanto à
diversidade quanto à igualdade, nunca fora tão impopular. Como
acontece nesses casos, começava a faltar-lhe apoio político. Nos
círculos próximos, cada vez mais incompletos e descoordenados,
sobrava insubordinação. Por isso ele estava nervoso quando o Agente
da Passiva foi vê-lo. “Evite comentários sem nexo”, disse o
secretário do Regente, Dante, para o Agente da Passiva, ao abrir-lhe
a porta. Dante conseguira o emprego por indicação da Rainha, que,
em privado, tinha grande ascendência sobre o Regente. Aliás, o
próprio Regente, que nunca fora um nome substantivo, chegara a essa
posição por influência dela, de quem agora era quase um fantoche.
Evidentemente, não era talhado para o cargo. Mas era justo na
incompetência dele que a Rainha apostava, pois a instabilidade
social também fazia parte dos planos dela. Bastava o Regente começar
a falar para que seus problemas com a regência ficassem patentes:
“Acabo ver ao subversivo e apelativo Vocativo: quanta exageração
até os fatos! De que ponto chegamos! Espero que trazes alguma
novidade”, disse ao Agente da Passiva, assim que este foi
introduzido no gabinete. “Subversivo pior foi visto e gravado por
mim”, respondeu o Agente da Passiva, correspondendo às
expectativas do chefe por uma novidade no caso. Demonstrando vivo
interesse, o Regente convidou-o para sentar. “Grego, membro dos
Compostos Eruditos, foi entrevistado por Vocativo em meio à
manifestação”, continuou o Agente da Passiva. “Esses
terroristas pedantes estão em trás das badernas?”, indagou o
Regente. “Grego não teria sido visto e filmado lá se estivesse
envolvido. Mas ponto não é dado sem nó por esse perigoso radical.
A emoção do público foi provocada pelo depoimento mentiroso dele.
Lenha foi posta na fogueira. De um modo ou de outro, o acontecimento
será aproveitado pelos Compostos Eruditos”, especulou o perspicaz
Agente da Passiva. “Corto-lhes da língua!”, gritou o Regente.
“Tum,
tum, pra ti punctum, tum, tum, tum, tum”, cantarolou Latino
ao ouvido de Grego, indicando a ação dos cassetetes dos guardas
sobre os pontos desarmados. “‘Telegrafia governista’ é o nome
desse samba”, disse Grego ao ouvido de Latino. A pancadaria estava
disseminada. “Passa o monóculo, antes que o quebrem”, pediu
Latino. “Toma. E vamos embora. Já vimos o suficiente”, disse
Grego, esquivando-se de aspas simples que caíam fincadas no chão,
aos seus pés. “Mas o automóvel está preso no engarrafamento”,
lembrou Latino. “Que fique como símbolo secreto de nossa adesão à
revolta. Depois o resgatamos”, respondeu Grego. O olhar onipotente
de um encontrou o megalômano do outro, e eles se regozijaram. Então
foram abrindo caminho com dificuldade, sem deixar nunca de somar suas
vozes às dos manifestantes. Tiveram dessa vez o cuidado de desviar
das câmeras de televisão, para não levantar suspeitas sobre si.
Vocativo retomara a transmissão. “Há um ponto pacífico ali,
tentando entregar flores aos guardas. Entrevista ele, entrevista
ele”, falava o ponto eletrônico. “Senhor, o que pretende com
essas flores?”, perguntou Vocativo. “Sou integrante do movimento
religioso Ponto de Cruz. Somos pela não violência”, respondeu o
ponto pacífico. “Vocês querem é entregar os pontos!”,
intrometeu-se uma exclamação, arrancando as flores da mão do ponto
pacífico. Numa reação inesperada e desproporcional, o guarda-roupa
a quem as flores haviam sido oferecidas jogou-se brutalmente sobre os
pontos divergentes, por pouco não derrubando também Vocativo e seu
câmera, Indicativo, que, no esforço de se equilibrar, ainda teve
habilidade suficiente para registrar o voo do ramalhete que se abriu,
perdendo talos e pétalas pelo caminho. “Lindo”, exultou o ponto
eletrônico. A imagem seria reprisada à exaustão, em câmera lenta.
“Viste aquilo? Vai deixar claro que esse governo não é flor que
se cheire”, entusiasmou-se Latino. “Ou que esta é a revolução
em flor”, acrescentou Grego.
Oscilando
entre o alívio e o desespero, Caminhão avançou pela penumbra do
quarto e abraçou Palavra-ônibus, que tremia de emoção. O ponto
desperto perscrutava o teto do quarto não como se tentasse
identificá-lo, mas como se estivesse surpreso por reencontrá-lo.
Era visivelmente um ponto fraco. Seu rosto redondo e liso, porém,
denotava tranquilidade, quase uma paz profunda. Quem diria que fora
atropelado havia pouco? Caminhão se perguntava quem seria o
pobrezinho. Até o momento, nenhum parente ou amigo aparecera na
mídia em busca dele. Tudo o que se dizia a seu respeito eram
suposições. Ainda assim, as notícias mostravam que aquele ponto
simples e desconhecido fora rapidamente convertido em ponto de
referência por seus pares. Atento ao desdobramento das
manifestações, Caminhão começava a entender que ir direto ao
ponto tinha sido mais que um mero acidente cotidiano: fora a gota d
’água para uma pontuação insatisfeita com as condições de vida
e de trabalho. Por isso a franca recuperação da vítima não podia
aliviá-lo completamente. Ele temia se transformar num símbolo
negativo, expressão criminosa e covarde de um sistema contra o qual
a pontuação se rebelava. Se o cenário adverso se confirmasse ele
seria punido, de um modo ou de outro. Ainda que o ponto o perdoasse
ou até mesmo saísse em sua defesa, ninguém mais quereria estar do
lado dele. A pontuação não aceitaria que ficasse impune, sob pena
de enfraquecer o movimento; o governo não teria pudor em puni-lo
exemplarmente para acalmar os revoltosos. Caminhão e a mulher só
tinham agora um ao outro. Viviam modestamente. Palavra-ônibus
perdera o trabalho numa editora, onde ideias de que tudo podia ser
legal ou bacana eram as mais empregadas. O espírito da época
mudara, e com ele os filões de mercado, obrigando a editora, que
ademais era mal administrada, a fechar as portas. O desemprego,
somado ao diagnóstico médico de que não poderia engravidar, tinham
levado Palavra-ônibus a um profundo abatimento. Caminhão faria de
tudo para que ela não passasse mais privações, e se fosse preso
era o que a esperava. Ele beijou a testa da mulher e decidiu
poupá-la, naquele momento, do que acabara de ver na televisão.
Nisso o ponto se virou para ele e sussurrou: “Pai”.
A velha
carruagem real sacolejava pelo caminho de pedras irregulares que
levava ao Palácio de Versal, a morada do Rei – que o povo
apelidara de Versalete por causa do aspecto atarracado da construção.
Em meio ao rangido dos eixos, escutava-se a voz da Rainha:
“Apruma-te, moleirão, estamos chegando”. A Rainha tinha o rei na
barriga. Não desperdiçava uma oportunidade de menosprezar o marido,
de fazê-lo sentir-se inseguro. “Impossível manter-se ereto nesta
caixa incômoda e desengonçada”, queixou-se o Rei. “Impossível
para ti, que és um frouxo. Arruma essa peruca”, ela seguia
espezinhando. “Carruagem, perucas… Bobagens que tu inventas.
Ninguém mais usa essas coisas hoje em dia”, continuou o Rei,
acomodando a peruca que lhe caía sobre os olhos. “Por um lado tu
tens razão: poderias não usar nada disso, afinal de contas és um
ninguém. Mas, queiras ou não, és também um rei. Então, tenta
pelo menos manter as aparências.” “Estou enjoado. Acho que
vou…”, disse o Rei, e vomitou no próprio colo antes de poder
concluir a frase. “Usa a janela, relaxado!”, gritou a Rainha. O
Rei botou a cabeça para fora e golfou outra vez, com força, no
instante em que a carruagem adentrava o pátio do Versalete. A peruca
voou, misturando-se ao vômito ainda no ar. A carruagem parou e a
Rainha desceu, falando aos empregados: “Pão regurgitado e circo
para vocês, com os cumprimentos de vossa nulidade real”. O Rei
desembarcou com o devotado Aposto em seu encalço. “Se meu Rei,
líder dos líderes, permite…”, disse o serviçal com cerimônia,
assim que pisaram o chão, e saiu a perseguir o cachorro do Rei, um
dálmata, que abocanhara a peruca vomitada e fugira com ela. “Entra
pela cozinha. Tu estás imundo”, ordenou a Rainha ao Rei. O Rei
obedeceu. As cozinheiras não o viram entrar. Estavam todas reunidas
em torno de uma pequena televisão, acompanhando a reportagem de
Vocativo. O Rei parou atrás delas e viu quando o guarda-roupas se
jogou sobre o ponto pacífico e a exclamação; viu o ramalhete de
flores desfazendo-se em câmera lenta em meio à pancadaria
generalizada. Os olhos do Rei encheram-se de lágrimas. Foi quando as
empregadas sentiram seu mau cheiro. “Há algo de podre no reino de
Ponto Alegre”, disse uma delas. “Sou eu”, disse o Rei,
afastando-se cabisbaixo, “sou eu.” [...]
Vitor Ramil, in A primavera da pontuação
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