segunda-feira, 1 de maio de 2023

A primavera da pontuação | Um

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O período da regência estava com os dias contados. Não porque a pontuação quisesse pôr-lhe um ponto final, mas porque o prazo máximo de duração determinado por lei se aproximava do fim e o Rei começava a falar em reassumir o comando do país – apesar do empenho da Rainha em mantê-lo afastado, já que isso dava a ela mais liberdade de movimentos tanto para exercer o poder nos bastidores como para levar adiante planos ambiciosos para o futuro, planos que não incluíam o marido. O Regente parecia estar com os dias mais contados ainda: autoritário e elitista, insensível tanto à diversidade quanto à igualdade, nunca fora tão impopular. Como acontece nesses casos, começava a faltar-lhe apoio político. Nos círculos próximos, cada vez mais incompletos e descoordenados, sobrava insubordinação. Por isso ele estava nervoso quando o Agente da Passiva foi vê-lo. “Evite comentários sem nexo”, disse o secretário do Regente, Dante, para o Agente da Passiva, ao abrir-lhe a porta. Dante conseguira o emprego por indicação da Rainha, que, em privado, tinha grande ascendência sobre o Regente. Aliás, o próprio Regente, que nunca fora um nome substantivo, chegara a essa posição por influência dela, de quem agora era quase um fantoche. Evidentemente, não era talhado para o cargo. Mas era justo na incompetência dele que a Rainha apostava, pois a instabilidade social também fazia parte dos planos dela. Bastava o Regente começar a falar para que seus problemas com a regência ficassem patentes: “Acabo ver ao subversivo e apelativo Vocativo: quanta exageração até os fatos! De que ponto chegamos! Espero que trazes alguma novidade”, disse ao Agente da Passiva, assim que este foi introduzido no gabinete. “Subversivo pior foi visto e gravado por mim”, respondeu o Agente da Passiva, correspondendo às expectativas do chefe por uma novidade no caso. Demonstrando vivo interesse, o Regente convidou-o para sentar. “Grego, membro dos Compostos Eruditos, foi entrevistado por Vocativo em meio à manifestação”, continuou o Agente da Passiva. “Esses terroristas pedantes estão em trás das badernas?”, indagou o Regente. “Grego não teria sido visto e filmado lá se estivesse envolvido. Mas ponto não é dado sem nó por esse perigoso radical. A emoção do público foi provocada pelo depoimento mentiroso dele. Lenha foi posta na fogueira. De um modo ou de outro, o acontecimento será aproveitado pelos Compostos Eruditos”, especulou o perspicaz Agente da Passiva. “Corto-lhes da língua!”, gritou o Regente.
Tum, tum, pra ti punctum, tum, tum, tum, tum”, cantarolou Latino ao ouvido de Grego, indicando a ação dos cassetetes dos guardas sobre os pontos desarmados. “‘Telegrafia governista’ é o nome desse samba”, disse Grego ao ouvido de Latino. A pancadaria estava disseminada. “Passa o monóculo, antes que o quebrem”, pediu Latino. “Toma. E vamos embora. Já vimos o suficiente”, disse Grego, esquivando-se de aspas simples que caíam fincadas no chão, aos seus pés. “Mas o automóvel está preso no engarrafamento”, lembrou Latino. “Que fique como símbolo secreto de nossa adesão à revolta. Depois o resgatamos”, respondeu Grego. O olhar onipotente de um encontrou o megalômano do outro, e eles se regozijaram. Então foram abrindo caminho com dificuldade, sem deixar nunca de somar suas vozes às dos manifestantes. Tiveram dessa vez o cuidado de desviar das câmeras de televisão, para não levantar suspeitas sobre si. Vocativo retomara a transmissão. “Há um ponto pacífico ali, tentando entregar flores aos guardas. Entrevista ele, entrevista ele”, falava o ponto eletrônico. “Senhor, o que pretende com essas flores?”, perguntou Vocativo. “Sou integrante do movimento religioso Ponto de Cruz. Somos pela não violência”, respondeu o ponto pacífico. “Vocês querem é entregar os pontos!”, intrometeu-se uma exclamação, arrancando as flores da mão do ponto pacífico. Numa reação inesperada e desproporcional, o guarda-roupa a quem as flores haviam sido oferecidas jogou-se brutalmente sobre os pontos divergentes, por pouco não derrubando também Vocativo e seu câmera, Indicativo, que, no esforço de se equilibrar, ainda teve habilidade suficiente para registrar o voo do ramalhete que se abriu, perdendo talos e pétalas pelo caminho. “Lindo”, exultou o ponto eletrônico. A imagem seria reprisada à exaustão, em câmera lenta. “Viste aquilo? Vai deixar claro que esse governo não é flor que se cheire”, entusiasmou-se Latino. “Ou que esta é a revolução em flor”, acrescentou Grego.
Oscilando entre o alívio e o desespero, Caminhão avançou pela penumbra do quarto e abraçou Palavra-ônibus, que tremia de emoção. O ponto desperto perscrutava o teto do quarto não como se tentasse identificá-lo, mas como se estivesse surpreso por reencontrá-lo. Era visivelmente um ponto fraco. Seu rosto redondo e liso, porém, denotava tranquilidade, quase uma paz profunda. Quem diria que fora atropelado havia pouco? Caminhão se perguntava quem seria o pobrezinho. Até o momento, nenhum parente ou amigo aparecera na mídia em busca dele. Tudo o que se dizia a seu respeito eram suposições. Ainda assim, as notícias mostravam que aquele ponto simples e desconhecido fora rapidamente convertido em ponto de referência por seus pares. Atento ao desdobramento das manifestações, Caminhão começava a entender que ir direto ao ponto tinha sido mais que um mero acidente cotidiano: fora a gota d ’água para uma pontuação insatisfeita com as condições de vida e de trabalho. Por isso a franca recuperação da vítima não podia aliviá-lo completamente. Ele temia se transformar num símbolo negativo, expressão criminosa e covarde de um sistema contra o qual a pontuação se rebelava. Se o cenário adverso se confirmasse ele seria punido, de um modo ou de outro. Ainda que o ponto o perdoasse ou até mesmo saísse em sua defesa, ninguém mais quereria estar do lado dele. A pontuação não aceitaria que ficasse impune, sob pena de enfraquecer o movimento; o governo não teria pudor em puni-lo exemplarmente para acalmar os revoltosos. Caminhão e a mulher só tinham agora um ao outro. Viviam modestamente. Palavra-ônibus perdera o trabalho numa editora, onde ideias de que tudo podia ser legal ou bacana eram as mais empregadas. O espírito da época mudara, e com ele os filões de mercado, obrigando a editora, que ademais era mal administrada, a fechar as portas. O desemprego, somado ao diagnóstico médico de que não poderia engravidar, tinham levado Palavra-ônibus a um profundo abatimento. Caminhão faria de tudo para que ela não passasse mais privações, e se fosse preso era o que a esperava. Ele beijou a testa da mulher e decidiu poupá-la, naquele momento, do que acabara de ver na televisão. Nisso o ponto se virou para ele e sussurrou: “Pai”.
A velha carruagem real sacolejava pelo caminho de pedras irregulares que levava ao Palácio de Versal, a morada do Rei – que o povo apelidara de Versalete por causa do aspecto atarracado da construção. Em meio ao rangido dos eixos, escutava-se a voz da Rainha: “Apruma-te, moleirão, estamos chegando”. A Rainha tinha o rei na barriga. Não desperdiçava uma oportunidade de menosprezar o marido, de fazê-lo sentir-se inseguro. “Impossível manter-se ereto nesta caixa incômoda e desengonçada”, queixou-se o Rei. “Impossível para ti, que és um frouxo. Arruma essa peruca”, ela seguia espezinhando. “Carruagem, perucas… Bobagens que tu inventas. Ninguém mais usa essas coisas hoje em dia”, continuou o Rei, acomodando a peruca que lhe caía sobre os olhos. “Por um lado tu tens razão: poderias não usar nada disso, afinal de contas és um ninguém. Mas, queiras ou não, és também um rei. Então, tenta pelo menos manter as aparências.” “Estou enjoado. Acho que vou…”, disse o Rei, e vomitou no próprio colo antes de poder concluir a frase. “Usa a janela, relaxado!”, gritou a Rainha. O Rei botou a cabeça para fora e golfou outra vez, com força, no instante em que a carruagem adentrava o pátio do Versalete. A peruca voou, misturando-se ao vômito ainda no ar. A carruagem parou e a Rainha desceu, falando aos empregados: “Pão regurgitado e circo para vocês, com os cumprimentos de vossa nulidade real”. O Rei desembarcou com o devotado Aposto em seu encalço. “Se meu Rei, líder dos líderes, permite…”, disse o serviçal com cerimônia, assim que pisaram o chão, e saiu a perseguir o cachorro do Rei, um dálmata, que abocanhara a peruca vomitada e fugira com ela. “Entra pela cozinha. Tu estás imundo”, ordenou a Rainha ao Rei. O Rei obedeceu. As cozinheiras não o viram entrar. Estavam todas reunidas em torno de uma pequena televisão, acompanhando a reportagem de Vocativo. O Rei parou atrás delas e viu quando o guarda-roupas se jogou sobre o ponto pacífico e a exclamação; viu o ramalhete de flores desfazendo-se em câmera lenta em meio à pancadaria generalizada. Os olhos do Rei encheram-se de lágrimas. Foi quando as empregadas sentiram seu mau cheiro. “Há algo de podre no reino de Ponto Alegre”, disse uma delas. “Sou eu”, disse o Rei, afastando-se cabisbaixo, “sou eu.” [...]

Vitor Ramil, in A primavera da pontuação

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