terça-feira, 23 de maio de 2023

O homem de 2003

O Homem de 2003 acorda ao som do seu celular tocando o Nokia Tune. O homem de 2003 abre sua agenda (ele ainda usa agenda) e descobre que tem uma reunião no centro da cidade dali a uma hora. “Uma hora é tempo de sobra para chegar no centro”, ele pensa, “ainda dá pra tomar um cafezinho” — coitado.
O homem de 2003 sai de casa com cinco reais na carteira: ele acha que a passagem custa um e cinquenta. Ao embarcar, percebe que, além de custar três reais, agora o ônibus tem uma televisão em que passam dicas astrológicas. O trânsito está parado e o homem de 2003 já leu onze vezes seu horóscopo. O homem de 2003 chega à reunião com uma hora e meia de atraso. As pessoas não parecem se incomodar — essa é a vida em 2014. Os colegas riem quando ele põe trema. Tadinho do homem de 2003. Ele é do tempo do trema!
O homem de 2003 vai à padaria e pede um cafezinho. A caixa de 2014 estende a máquina do cartão: débito ou crédito? O homem de 2003 não sabe o que responder. Não faziam essa pergunta em 2003. O homem de 2003 estende uma moeda de cinquenta centavos. A caixa explica: “Custa sete reais”. “O cafezinho?” “É Nespresso”, ela responde. “É o quê?” O homem de 2003 desiste. “Chegando em casa eu passo um café (o homem de 2003 ainda fala ‘passar um café’).” O homem de 2003 liga para os amigos, mas eles não atendem. As pessoas não atendem mais o telefone em 2014. Ele joga perguntas no Yahoo: “Como falar com amigos em 2014?” e descobre que ele tem que baixar um WhatsApp. Mas não sabe como fazer isso no seu Nokia 1100.
O homem de 2003 vai ao pior bar da cidade. Quem sabe assim encontra seus melhores amigos. Felizmente, certas coisas não mudam: seus melhores amigos continuam frequentando o pior bar da cidade. A diferença é que cada um está mergulhado na tela do seu celular. Fazem carinho na tela, coçam a tela, tamborilam a tela. Quando falam, é pra comentar o que está na tela: você viu isso aqui? Você leu isso aqui? Vou te mandar isso aqui. O homem de 2003 conta uma piada, mas é velha. Arrisca uma fofoca, mas é manjada. Quando fala de política, é um desastre. Ele diz que acredita no Lula. Ele diz que sonha em ver a Copa no Maracanã. Os homens de 2014 voltam para sua tela. Postam no Facebook: Amigo petralha #semcomentários.
Na volta, ele lê as dicas astrológicas pela enésima vez: “O homem de Áries precisa se adaptar à realidade ao seu redor”. Ele decide: “Vou comprar um iPhone”. Enquanto isso não acontece, pega o celular e se delicia com o jogo da cobrinha.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

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