Voltemos
à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor;
envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo
para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que
muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um
desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
E
vejam agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos
espaços, como uma lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme
hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que sofreu um
casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um eclesiástico, depois um
assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão
esse canto de terra, que lhes deu algumas ilusões.
Virgília
fez daquilo um brinco; designou as alfaias mais idôneas, e dispô-las
com a intuição estética da mulher elegante; eu levei para lá
alguns livros, e tudo ficou sob a guarda de Dona Plácida, suposta,
e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa.
Custou-lhe
muito a aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício;
mas afinal cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si
mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim durante
os primeiros dois meses; falava-me com eles baixos, séria,
carrancuda, às vezes triste.
Eu
queria angariá-la, e não me dava por ofendido, tratava-a com
carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência, depois a
confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma história
patética dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao
casamento, a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei que
outros toques de novela. Dona Plácida não rejeitou uma só página
da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciência. Ao
cabo de seis meses quem nos visse a todos três juntos diria que Dona
Plácida era minha sogra.
Não
fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, – os cinco contos
achados em Botafogo, – como um pão para a velhice. Dona Plácida
agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar
por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem que tinha no
quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
Nenhum comentário:
Postar um comentário