segunda-feira, 22 de maio de 2023

A primavera da pontuação | Um

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Depois de chamar Caminhão de pai, o ponto fechou os olhos e voltou a dormir. Caminhão quase apagou junto. Aquilo era demais para ele. Palavra-ônibus o segurou pelo braço e o tirou dali. Na sala ele chorou convulsivamente. Já não entendia seus sentimentos, não sabia o que pensar. Enquanto consolava o marido, Palavra-ônibus inteirou-se dos últimos acontecimentos pela televisão, que não cessava de transmitir as manifestações e enfrentamentos nas ruas, e pôde então entender o drama que o marido estava vivendo. “Olha só o que eu provoquei”, lamentava-se Caminhão, entre soluços. “Não sejas ingênuo”, ela ponderou, “isso transcende o atropelamento do ponto. E o mais importante: ele está vivo.” “Vivo, mas sabe-se lá em que condições. Pensa que somos seus pais…” “Deve estar em estado de choque. Isso passa. Vamos cuidar dele, esperar que se recupere. Depois vemos.” “Depois vemos… Isto tudo pode até passar para ele. Mas passará para nós? O que nos garante que ele será capaz de reconhecer o afeto que lhe tenhamos dedicado? E a pontuação, e a lei, o que pensarão? Que agi como um bom pai? Nada disso. Farão de tudo para que eu seja condenado, preso ou impedido de trabalhar. Podes imaginar as consequências disso para a nossa vida?” “Não vamos nos desesperar. As coisas estão evoluindo a nosso favor: o ponto se recupera, os protestos da pontuação assumem um caráter e uma proporção que, aos poucos, te retiram do centro dos acontecimentos. E quanto a uma possível condenação, já te ocorreu que o ponto pode ter sua parcela de culpa? Vamos esperar para ver o que ele tem a nos contar.” “Esperar… Preciso sair, retomar meu trabalho.” “Não por enquanto. Vamos ficar em casa e deixar os ânimos lá fora se acalmarem. Estamos seguros aqui. Se tivessem te identificado, já teriam vindo à tua procura – tuas placas embarradas parecem ter sido de grande serventia. Prometo nunca mais reclamar da tua falta de banho… E se ninguém deu falta do ponto, é porque ninguém sabe quem ele é. Talvez seja um desses infelizes que andam rolando pela rua, para quem a sociedade só liga quando precisa exercitar sua demagogia. E quanto à repercussão na mídia, ela não é de todo ruim, gera polêmica, e a polêmica já está tão grande que falta pouco para começarem a questionar a existência do ponto ou o seu atropelamento.” “Eu sei que ele existe”, disse Caminhão, “ele me chamou de pai.”
Amigos telespectadores, falo agora de nossos estúdios, onde começa mais um Palavras Cruzadas, o programa de debates líder de audiência. O tema não poderia ser outro: as manifestações que tomam conta de Ponto Alegre. Nossas equipes de reportagem continuarão a transmitir das ruas, mantendo-nos informados sobre os últimos acontecimentos”, introduziu Vocativo. “Os convidados de hoje são o poeta Ponto de Orvalho e o psicólogo Ptolomeu, organizador do 1 Encontro Consonantal de Ponto Alegre. Começando pelo senhor Ponto de Orvalho: na sua opinião, o que teria levado os protestos pelo atropelamento de um ponto até o momento anônimo a tomar essa proporção de levante popular?” “Pois é, meu caro Vocativo, de repente nossa sociedade tão hierarquizada descobre que nós, a pontuação, esse mero acessório empregado para simular na escrita a riqueza expressiva da oralidade, temos voz e pensamento próprios. Coloco-me no lugar dos todo-poderosos nomes e verbos e imagino sua preocupação: como lidar com uma exclamação que questiona, uma interrogação que se exclama, um ponto que quer dar livre curso às ideias ou uma vírgula que pretende pôr um ponto-final no atual estado de coisas? A verdade é que a pontuação, sabidamente acomodada, resolveu reagir ao rebaixamento de serva a pária a que tem sido submetida ao longo da história. O atropelamento de um ponto – e principalmente por tratar-se de um ponto anônimo, talvez menor abandonado, um desses pobrezinhos que se criam seguindo palavras de baixo calão – foi o estopim da revolta por ser emblemático da condição em que se encontra a pontuação como um todo. Uma pesquisa recente indica que mais de setenta por cento das famílias de pontos já tiveram um parente atropelado. Estamos diante de um sério problema social. Ao se indignar e sair às ruas, a pontuação apenas reivindica para si aquilo a que tem direito. E ela quer mais que segurança: quer ser respeitada para poder desempenhar seu papel com dignidade. O que temos visto por aí vai em sentido oposto. Os ponto e vírgulas estão sendo conduzidos a uma aposentadoria forçada. As exclamações, ao contrário, vêm sendo empregadas em excesso, o que anula seu efeito e as desvaloriza. Banalizadas pelo uso inadequado, deixam de ocupar posições importantes e significativas. Passa algo parecido com as reticências. É doloroso topar com tantos três pontinhos vagando à toa entre palavras ou frases, muitos deles carregando nas costas entrelinhas inúteis. Mas não podemos aceitar que sua erradicação pura e simples, como aconteceu por ocasião da limpeza das quadras de poesia, seja adotada como solução única em qualquer circunstância. Sobram exemplos de descaso para com a pontuação e falta reconhecimento de sua importância em nosso dia a dia. Quando tudo flui, quem leva os louros é a escolha de palavras, a sintaxe, as rimas ou as ideias, nunca a pontuação, que passa despercebida justamente porque fez um bom trabalho. Já quando as coisas não andam bem, a culpa sempre recai sobre ela. Ora, de quem é a culpa quando dois-pontos ou uma vírgula são mal-empregados? A pontuação precisa trabalhar, não pode se dar ao luxo de escolher o emprego. Se ela se manifesta, acho que, para o bem de todos, deveria ser ouvida.”
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Vitor Ramil, in A primavera da pontuação

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