quarta-feira, 26 de abril de 2023

A temporada de saury


[…]
As encostas das montanhas assumiram um tom escuro de verde. Ventos fracos, pouco mais fortes que uma brisa, começaram a soprar do leste. As moscas começaram a demonstrar seu prolífico poder de reprodução e enxameavam em volta das lulas penduradas para secar. Quando chegou a noite, mosquitos passaram a voar zumbindo perto dos ouvidos das pessoas.
De vez em quando um barco de carga passava diante da aldeia, mas os habitantes mal erguiam os olhos do trabalho enquanto os navios desapareciam à distância no mar calmo.
O número de lulas que conseguiam pescar começou a diminuir, e menos delas eram vistas penduradas para secar. Aquelas já secas eram amarradas com um barbante, e colocadas junto com as outras, esperando para ser levadas montanha acima.
A mãe de Isaku levou outras duas cargas de lula para a aldeia vizinha. A quantidade de grãos que trouxe como pagamento não foi nada de especial, mas ela parecia animada mesmo assim. Tinha parado no intermediário de contratos de servidão para perguntar sobre o pai dele e não havia notícias. Não haver notícias era uma boa notícia; ele devia estar bem. Isaku ficou aliviado ao saber disso, mas então ouviu a mãe dizer que a irmã mais velha de Tami tinha ficado doente depois de apenas dois meses.
E o intermediário teve a audácia de reclamar que foi enganado, depois de pagar um bom preço por ela — disse a mãe, cuspindo as palavras, ultrajada.
Se um servo sob contrato morria, o intermediário tinha de pagar uma certa quantia como compensação ao empregador com base no fato de ter oferecido um trabalhador inadequado. Por causa disso os intermediários só escolhiam pessoas fortes e saudáveis. Para cobrir uma possível perda financeira com a morte do trabalhador, ele pagava à família do trabalhador muito menos do que recebia do empregador. A aldeia de Isaku fornecia um bom número de trabalhadores.
Sem dúvida a família de Tami já devia saber a essa altura, e Isaku imaginou como eles teriam recebido a notícia. Sem dúvida teriam ficado perturbados, mas imaginou que poderiam pensar outras coisas também. Eles já haviam recebido o pagamento pelo contrato e a partida da irmã de Tami significava que tinham uma boca a menos para alimentar. Além disso, mesmo que ela pudesse voltar à vila depois de terminar o contrato, em termos de idade seria incapaz de obter um casamento favorável. Levando isso em consideração, a notícia de que a irmã de Tami tinha ficado doente com o que só poderia ser uma doença fatal não significava necessariamente má sorte para a família.
Colocando os grãos que trouxera em um vaso na despensa, a mãe murmurou:
Não há chance de seu pai ter morrido. Ele é forte demais — o tom de voz dela foi como se estivesse admoestando a si mesma por ter tido um momento de dúvida.
Na tarde do dia seguinte, Isaku estava puxando seu barco para a praia quando ouviu o homem ao lado dele exclamar:
Um arco-íris!
Erguendo os olhos, Isaku viu que o arco-íris começava mais ou menos no alto da cadeia de montanhas e seguia até o mar. Era o primeiro arco-íris do ano.
Logo os saury estarão aqui — disse o homem, entusiasmado, ao colocar o remo sobre o ombro e seguir para a praia.
As cores do arco-íris gradualmente ficaram mais escuras, adornando o céu da tarde. Arco-íris no final da tarde eram vistos como bom presságio, especialmente aqueles que apareciam no começo do verão, que acreditavam prenunciar uma boa temporada de saury. Mas Isaku não se sentia tão otimista ao olhar o arco-íris. Sua habilidade de pegar saury deixava muito a desejar e, se sua pesca fosse tão ruim quanto a do ano anterior, sua família iria passar fome. A temporada de saury era crucial para a aldeia, já que a sobrevivência das famílias ao longo do ano dependia da habilidade de estocar essa fonte vital de nutrição. Takichi dissera que iria ensinar a Isaku o jeito certo de capturar saury, mas talvez ele só tivesse falado isso porque estava de bom humor por causa do casamento.
Isaku às vezes via Takichi na praia, e às vezes o via pescando lá fora no mar. Se era porque agora tinha uma esposa não estava claro, mas Takichi parecia ter um brilho de confiança nos olhos. Apesar de Takichi ser pequeno, Isaku achava que ele o fitava do alto com um ar de condescendência. Isaku imaginava que a atitude de Takichi significava que não iria ensinar a ele como pegar saury.
Mas uma mudança muito mais dramática em Kura chamou a atenção dos habitantes da aldeia. Ela ia até a praia assim que via Takichi retornando do dia de pescaria. Era uma pessoa diferente na presença de Takichi, seguindo obedientemente todas as ordens dele. Forte como era, Kura erguia sem esforço a grande tina com todo o pescado do dia, apoiando-a no ombro e voltando apressada para casa. Takichi subia a encosta de mãos abanando. Sorrindo de modo lascivo, os outros brincavam dizendo que Takichi devia ter tirado o couro dela.
Nos dias em que o mar estava bravo, Isaku amarrava uma machadinha e barbante em um quadro de carga e ia para o mato recolher casca de tília para fazer tecido. Era comum encontrar cobras nos bosques fechados de tílias, por isso Isaku usava protetores nas pernas, além de calças justas.
Estava chovendo levemente, mas o vento era forte. Isaku baixou a aba do chapéu de junco para impedir que fosse levado pelo vento ao subir pela trilha úmida da montanha.
Depois de caminhar por cerca de uma hora ele chegou à floresta. O topo das árvores balançava de forma selvagem, mas não havia vento embaixo e o cheiro úmido da casca das árvores impregnava o ar. Ele parou perto de uma tília e soltou a machadinha e o barbante do quadro que trazia nas costas. Seu pai o levara para colher casca de tílias duas vezes no passado e, assim como o pai, Isaku enfiou a lâmina da machadinha bem perto da raiz. Cortou um galho da árvore próxima, dando-lhe a forma de uma espátula, e inseriu a ponta sob a casca, erguendo a ponta o suficiente para pegá-la com a mão e puxar. A casca foi arrancada do tronco.
Ele foi de uma árvore para outra, arrancando a casca de cada uma delas. As gotas de chuva faziam barulho ao cair em seu chapéu. A água escorrendo pelos troncos das tílias brilhava.
Seu estômago lhe dizia que estava na hora de comer. Isaku abriu um pequeno pacote de folha de bambu e atacou o bolinho de milho miúdo que havia ali dentro. No ano anterior ele não havia apanhado nenhuma casca de tília, mas nesse ano conseguiria levar o suficiente para sua mãe fazer roupas para eles. Enquanto olhava para as cascas de tília que havia arrancado das árvores, ele sentiu que se tornara o chefe da família.
Isaku trabalhou mais um pouco antes de recolher todas as cascas, dobrá-las ao meio e amarrar tudo com o barbante, que prendeu no quadro de carga que por sua vez foi colocado sobre suas costas. Era pesado, cerca de trinta ou trinta e cinco quilos.
Usando uma vara para se equilibrar, Isaku caminhou cautelosamente entre as árvores e saiu da floresta. A chuva estava mais forte, espalhando-se em gotículas ao atingir seu chapéu e ombros. O vento empurrava sua carga, e ele sentia o corpo se movendo com ela. Isaku desceu a trilha parando ocasionalmente para se endireitar contra as rajadas de vento. O mar tempestuoso apareceu à vista abaixo dele. Estava molhado até os ossos de chuva e suor.
A mãe começou a preparar as cascas de árvore naquela mesma noite. Cortou a parte externa com uma faca e colocou as camadas internas no chão. Isaku reparava seu equipamento de pesca no chão de terra enquanto observava a mãe, que parecia concentrada no trabalho.
No dia seguinte ela ensopou as camadas internas das cascas de árvore no riacho perto da casa deles. Os pedaços externos das cascas foram reunidos em um canto, prontos para ser usados para iniciar o fogo. Cinco dias depois ela tirou as camadas do riacho e as ferveu em uma panela de água, misturando com cinzas. Então colocou-as no riacho novamente, lavou-as bem, e pendurou-as para secar à sombra antes de desfiá-las para fazer linha. Em seguida fiou a linha na roda de fiar e depois sentou-se diante do tear, transformando-a em tecido. Tratava-se de um trabalho cansativo; às vezes ela parava para esfregar os olhos, com sono.
A estação chuvosa começou e muita água caiu sobre a aldeia. Os habitantes não encontravam mais lulas, e agora não pegavam nada além de pequenos peixinhos.
À tarde um velho pescador voltou da praia dizendo que os saury estavam começando a chegar. Isaku sentiu que perdia a compostura. Seu pai era hábil para pegar saury, mas para Isaku era um truque que ele não conseguia aprender de jeito nenhum. Na estação chuvosa anterior ele tentara pescar da forma como se lembrava de ver o pai fazendo, mas não conseguira pegar nada. A família de Isaku teve de ficar sentada sem ter o que fazer, olhando a fumaça que exalava das outras casas, onde estavam grelhando saury e vendo todos os outros guardando o saury em tinas. Naquele ano, ele pensou, tenho de pegar alguma coisa, mesmo que não seja muito, para minha família.
Como a pesca do saury era a mais importante de todo o ano para a aldeia, os homens faziam o máximo para pegar tanto quanto possível; não havia tempo disponível para ensinar técnicas de pesca para os outros. Na temporada anterior, as outras famílias da aldeia haviam ficado com pena da família de Isaku e cada uma lhes dera um pouco de peixe, mas naquele ano ele não queria ter de depender de caridade.
A única pessoa a quem Isaku podia recorrer era seu primo Takichi, mas, agora que ele tinha a própria casa para cuidar, era pouco provável que pudesse ensinar Isaku a pescar. Além disso, Isaku estava preocupado porque Takichi havia mudado desde o casamento. Mas Isaku decidiu que não havia modo de ele deixar sua família morrer de fome, então naquela mesma tarde, depois de engolir seu jantar bem depressa, ele correu pela trilha iluminada pelo luar até a casa do primo.
Alô? — chamou Isaku ao enfiar a cabeça pela esteira de palha pendurada na entrada.
Takichi olhou para a porta de onde estava sentado no chão de terra, com a esposa ajoelhada a seu lado. Havia vários pedaços de palha grossa espalhados no chão, assim como muitos pedaços grossos de corda. Vendo que Takichi estava começando a preparar seu material de pesca, Isaku se aproximou dele.
Você disse que ia me ensinar a pegar saury. Quero que me ensine. Minha família vai passar fome. Espero que não tenha esquecido o que disse naquela noite — disse Isaku.
Eu não esqueci. Eu achava que você ia aparecer logo — disse Takichi. Um leve sorriso apareceu nos lábios dele.
Isaku ficou aliviado. Sentou-se ao lado do primo e fixou os olhos nas mãos de Takichi, que não paravam.
Para pescar saury, um pescador devia amarrar juntas três ou quatro peças de esteira de palha grossa e amarrar uma corda pesada nelas, deixando o conjunto flutuar cerca de quarenta metros atrás do barco. Ao mesmo tempo, junto da amurada, devia deixar flutuando um pedaço de esteira de palha com algas penduradas embaixo. Depois de lançar a âncora, ele devia se deitar para não ser visto pelos peixes. Quando sentisse que um cardume de saury estava perto da esteira, ele devia puxá-la pela corda. Os peixes se moviam com ela e nadavam por baixo da esteira com as algas. As algas presas sob a esteira deixavam os saury excitados, e eles subitamente começavam a desovar. O pescador devia então enfiar a mão por um dos vários buracos na esteira e mover os dedos na água. Atraídos, os saury nadavam entre os dedos e eram pegos em um instante. […]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

Nenhum comentário:

Postar um comentário