[…]
As
encostas das montanhas assumiram um tom escuro de verde. Ventos
fracos, pouco mais fortes que uma brisa, começaram a soprar do
leste. As moscas começaram a demonstrar seu prolífico poder de
reprodução e enxameavam em volta das lulas penduradas para secar.
Quando chegou a noite, mosquitos passaram a voar zumbindo perto dos
ouvidos das pessoas.
De
vez em quando um barco de carga passava diante da aldeia, mas os
habitantes mal erguiam os olhos do trabalho enquanto os navios
desapareciam à distância no mar calmo.
O
número de lulas que conseguiam pescar começou a diminuir, e menos
delas eram vistas penduradas para secar. Aquelas já secas eram
amarradas com um barbante, e colocadas junto com as outras, esperando
para ser levadas montanha acima.
A
mãe de Isaku levou outras duas cargas de lula para a aldeia vizinha.
A quantidade de grãos que trouxe como pagamento não foi nada de
especial, mas ela parecia animada mesmo assim. Tinha parado no
intermediário de contratos de servidão para perguntar sobre o pai
dele e não havia notícias. Não haver notícias era uma boa
notícia; ele devia estar bem. Isaku ficou aliviado ao saber disso,
mas então ouviu a mãe dizer que a irmã mais velha de Tami tinha
ficado doente depois de apenas dois meses.
— E
o intermediário teve a audácia de reclamar que foi enganado, depois
de pagar um bom preço por ela — disse a mãe, cuspindo as
palavras, ultrajada.
Se
um servo sob contrato morria, o intermediário tinha de pagar uma
certa quantia como compensação ao empregador com base no fato de
ter oferecido um trabalhador inadequado. Por causa disso os
intermediários só escolhiam pessoas fortes e saudáveis. Para
cobrir uma possível perda financeira com a morte do trabalhador, ele
pagava à família do trabalhador muito menos do que recebia do
empregador. A aldeia de Isaku fornecia um bom número de
trabalhadores.
Sem
dúvida a família de Tami já devia saber a essa altura, e Isaku
imaginou como eles teriam recebido a notícia. Sem dúvida teriam
ficado perturbados, mas imaginou que poderiam pensar outras coisas
também. Eles já haviam recebido o pagamento pelo contrato e a
partida da irmã de Tami significava que tinham uma boca a menos para
alimentar. Além disso, mesmo que ela pudesse voltar à vila depois
de terminar o contrato, em termos de idade seria incapaz de obter um
casamento favorável. Levando isso em consideração, a notícia de
que a irmã de Tami tinha ficado doente com o que só poderia ser uma
doença fatal não significava necessariamente má sorte para a
família.
Colocando
os grãos que trouxera em um vaso na despensa, a mãe murmurou:
— Não
há chance de seu pai ter morrido. Ele é forte demais — o tom de
voz dela foi como se estivesse admoestando a si mesma por ter tido um
momento de dúvida.
Na
tarde do dia seguinte, Isaku estava puxando seu barco para a praia
quando ouviu o homem ao lado dele exclamar:
— Um
arco-íris!
Erguendo
os olhos, Isaku viu que o arco-íris começava mais ou menos no alto
da cadeia de montanhas e seguia até o mar. Era o primeiro arco-íris
do ano.
— Logo
os saury estarão aqui — disse o homem, entusiasmado, ao
colocar o remo sobre o ombro e seguir para a praia.
As
cores do arco-íris gradualmente ficaram mais escuras, adornando o
céu da tarde. Arco-íris no final da tarde eram vistos como bom
presságio, especialmente aqueles que apareciam no começo do verão,
que acreditavam prenunciar uma boa temporada de saury. Mas
Isaku não se sentia tão otimista ao olhar o arco-íris. Sua
habilidade de pegar saury deixava muito a desejar e, se sua
pesca fosse tão ruim quanto a do ano anterior, sua família iria
passar fome. A temporada de saury era crucial para a aldeia,
já que a sobrevivência das famílias ao longo do ano dependia da
habilidade de estocar essa fonte vital de nutrição. Takichi dissera
que iria ensinar a Isaku o jeito certo de capturar saury, mas
talvez ele só tivesse falado isso porque estava de bom humor por
causa do casamento.
Isaku
às vezes via Takichi na praia, e às vezes o via pescando lá fora
no mar. Se era porque agora tinha uma esposa não estava claro, mas
Takichi parecia ter um brilho de confiança nos olhos. Apesar de
Takichi ser pequeno, Isaku achava que ele o fitava do alto com um ar
de condescendência. Isaku imaginava que a atitude de Takichi
significava que não iria ensinar a ele como pegar saury.
Mas
uma mudança muito mais dramática em Kura chamou a atenção dos
habitantes da aldeia. Ela ia até a praia assim que via Takichi
retornando do dia de pescaria. Era uma pessoa diferente na presença
de Takichi, seguindo obedientemente todas as ordens dele. Forte como
era, Kura erguia sem esforço a grande tina com todo o pescado do
dia, apoiando-a no ombro e voltando apressada para casa. Takichi
subia a encosta de mãos abanando. Sorrindo de modo lascivo, os
outros brincavam dizendo que Takichi devia ter tirado o couro dela.
Nos
dias em que o mar estava bravo, Isaku amarrava uma machadinha e
barbante em um quadro de carga e ia para o mato recolher casca de
tília para fazer tecido. Era comum encontrar cobras nos bosques
fechados de tílias, por isso Isaku usava protetores nas pernas, além
de calças justas.
Estava
chovendo levemente, mas o vento era forte. Isaku baixou a aba do
chapéu de junco para impedir que fosse levado pelo vento ao subir
pela trilha úmida da montanha.
Depois
de caminhar por cerca de uma hora ele chegou à floresta. O topo das
árvores balançava de forma selvagem, mas não havia vento embaixo e
o cheiro úmido da casca das árvores impregnava o ar. Ele parou
perto de uma tília e soltou a machadinha e o barbante do quadro que
trazia nas costas. Seu pai o levara para colher casca de tílias duas
vezes no passado e, assim como o pai, Isaku enfiou a lâmina da
machadinha bem perto da raiz. Cortou um galho da árvore próxima,
dando-lhe a forma de uma espátula, e inseriu a ponta sob a casca,
erguendo a ponta o suficiente para pegá-la com a mão e puxar. A
casca foi arrancada do tronco.
Ele
foi de uma árvore para outra, arrancando a casca de cada uma delas.
As gotas de chuva faziam barulho ao cair em seu chapéu. A água
escorrendo pelos troncos das tílias brilhava.
Seu
estômago lhe dizia que estava na hora de comer. Isaku abriu um
pequeno pacote de folha de bambu e atacou o bolinho de milho miúdo
que havia ali dentro. No ano anterior ele não havia apanhado nenhuma
casca de tília, mas nesse ano conseguiria levar o suficiente para
sua mãe fazer roupas para eles. Enquanto olhava para as cascas de
tília que havia arrancado das árvores, ele sentiu que se tornara o
chefe da família.
Isaku
trabalhou mais um pouco antes de recolher todas as cascas, dobrá-las
ao meio e amarrar tudo com o barbante, que prendeu no quadro de carga
que por sua vez foi colocado sobre suas costas. Era pesado, cerca de
trinta ou trinta e cinco quilos.
Usando
uma vara para se equilibrar, Isaku caminhou cautelosamente entre as
árvores e saiu da floresta. A chuva estava mais forte, espalhando-se
em gotículas ao atingir seu chapéu e ombros. O vento empurrava sua
carga, e ele sentia o corpo se movendo com ela. Isaku desceu a trilha
parando ocasionalmente para se endireitar contra as rajadas de vento.
O mar tempestuoso apareceu à vista abaixo dele. Estava molhado até
os ossos de chuva e suor.
A
mãe começou a preparar as cascas de árvore naquela mesma noite.
Cortou a parte externa com uma faca e colocou as camadas internas no
chão. Isaku reparava seu equipamento de pesca no chão de terra
enquanto observava a mãe, que parecia concentrada no trabalho.
No
dia seguinte ela ensopou as camadas internas das cascas de árvore no
riacho perto da casa deles. Os pedaços externos das cascas foram
reunidos em um canto, prontos para ser usados para iniciar o fogo.
Cinco dias depois ela tirou as camadas do riacho e as ferveu em uma
panela de água, misturando com cinzas. Então colocou-as no riacho
novamente, lavou-as bem, e pendurou-as para secar à sombra antes de
desfiá-las para fazer linha. Em seguida fiou a linha na roda de fiar
e depois sentou-se diante do tear, transformando-a em tecido.
Tratava-se de um trabalho cansativo; às vezes ela parava para
esfregar os olhos, com sono.
A
estação chuvosa começou e muita água caiu sobre a aldeia. Os
habitantes não encontravam mais lulas, e agora não pegavam nada
além de pequenos peixinhos.
À
tarde um velho pescador voltou da praia dizendo que os saury
estavam começando a chegar. Isaku sentiu que perdia a compostura.
Seu pai era hábil para pegar saury, mas para Isaku era um
truque que ele não conseguia aprender de jeito nenhum. Na estação
chuvosa anterior ele tentara pescar da forma como se lembrava de ver
o pai fazendo, mas não conseguira pegar nada. A família de Isaku
teve de ficar sentada sem ter o que fazer, olhando a fumaça que
exalava das outras casas, onde estavam grelhando saury e vendo
todos os outros guardando o saury em tinas. Naquele ano, ele
pensou, tenho de pegar alguma coisa, mesmo que não seja muito, para
minha família.
Como
a pesca do saury era a mais importante de todo o ano para a
aldeia, os homens faziam o máximo para pegar tanto quanto possível;
não havia tempo disponível para ensinar técnicas de pesca para os
outros. Na temporada anterior, as outras famílias da aldeia haviam
ficado com pena da família de Isaku e cada uma lhes dera um pouco de
peixe, mas naquele ano ele não queria ter de depender de caridade.
A
única pessoa a quem Isaku podia recorrer era seu primo Takichi, mas,
agora que ele tinha a própria casa para cuidar, era pouco provável
que pudesse ensinar Isaku a pescar. Além disso, Isaku estava
preocupado porque Takichi havia mudado desde o casamento. Mas Isaku
decidiu que não havia modo de ele deixar sua família morrer de
fome, então naquela mesma tarde, depois de engolir seu jantar bem
depressa, ele correu pela trilha iluminada pelo luar até a casa do
primo.
— Alô?
— chamou Isaku ao enfiar a cabeça pela esteira de palha pendurada
na entrada.
Takichi
olhou para a porta de onde estava sentado no chão de terra, com a
esposa ajoelhada a seu lado. Havia vários pedaços de palha grossa
espalhados no chão, assim como muitos pedaços grossos de corda.
Vendo que Takichi estava começando a preparar seu material de pesca,
Isaku se aproximou dele.
— Você
disse que ia me ensinar a pegar saury. Quero que me ensine.
Minha família vai passar fome. Espero que não tenha esquecido o que
disse naquela noite — disse Isaku.
— Eu
não esqueci. Eu achava que você ia aparecer logo — disse Takichi.
Um leve sorriso apareceu nos lábios dele.
Isaku
ficou aliviado. Sentou-se ao lado do primo e fixou os olhos nas mãos
de Takichi, que não paravam.
Para
pescar saury, um pescador devia amarrar juntas três ou quatro
peças de esteira de palha grossa e amarrar uma corda pesada nelas,
deixando o conjunto flutuar cerca de quarenta metros atrás do barco.
Ao mesmo tempo, junto da amurada, devia deixar flutuando um pedaço
de esteira de palha com algas penduradas embaixo. Depois de lançar a
âncora, ele devia se deitar para não ser visto pelos peixes. Quando
sentisse que um cardume de saury estava perto da esteira, ele
devia puxá-la pela corda. Os peixes se moviam com ela e nadavam por
baixo da esteira com as algas. As algas presas sob a esteira deixavam
os saury excitados, e eles subitamente começavam a desovar. O
pescador devia então enfiar a mão por um dos vários buracos na
esteira e mover os dedos na água. Atraídos, os saury nadavam
entre os dedos e eram pegos em um instante. […]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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