SEGUNDA
E DEFINITIVA CARTA AO TIMES
(Com
vista ao Sr. redator da Seção Necrológica)
Escrevo-lhe
esta em prantos, não para comunicar-lhe a morte de um ente querido,
mas a minha própria morte. Como tudo que parece estranho, isto que
acabo de anunciar tem na realidade uma explicação muito simples: é
que resolvi suicidar-me e o senhor foi (à falta de um parente ou
amigo, que não tenho) a única pessoa a quem me ocorreu dar, de
antemão, a dolorosa notícia. Ao chegar esta à sua mesa repleta de
avisos fúnebres e convites de missa de 7.° dia, já meu corpo, se
foi encontrado, estará repousando no lugar que lhe compete dentro da
imensidão da terra, ao lado de outros corpos de indigentes anônimos
e esquecidos do mundo, com os quais possivelmente me comunicarei nas
noites de tédio infinito.
Ainda
uma hora atrás eu não sabia que hoje iria dormir em companhia dos
mortos — hoje ou amanhã, conforme o tempo que levem para descobrir
meu corpo franzino entres estes enormes eucaliptos e sob este
cipreste que espero venha a cobrir um dia minha sepultura rasa. Como
tudo que tenho feito na vida, decidi realizar minha morte sem pensar
muito tempo no assunto, mesmo porque sempre me pareceu que a morte
não é tão importante quanto querem fazer crer os vivos, dada a
nossa perfeita insignificância dentro do universo. A morte de um
mosquito é tão importante quanto a minha própria morte, digo-o sem
falsa modéstia, e disso o senhor mesmo terá prova ao ficar sabendo
do meu suicídio, que o afetará tanto quanto a morte de um dos
milhões de perus sacrificados à véspera do Natal. A comunhão dos
mortos ainda pode ser uma realidade, pelo menos para os que nela
creem piamente, à sombra da necrofilia católica ou que outro nome
tenha; a comunhão dos vivos, porém, ainda está por existir e com
toda certeza não existirá nunca, dada a pouca cordialidade
existente entre os homens, como de resto entre todas as feras de uma
mesma espécie.
Sei
que é de praxe o suicida invocar grandes razões, e se possível
belas, para justificar seu gesto tresloucado, como dizem — e sinto
ter que decepcioná-lo não invocando nenhuma razão maior para
explicar esta minha fuga prematura de um mundo que afinal é o único
mundo com o qual podemos contar honestamente. Se eu quisesse,
certamente poderia encontrar uma dúzia ou mesmo duas de belas razões
(metafísicas, econômicas, políticas etc. etc.) capazes de
justificar não apenas o meu suicídio como o suicídio de toda a
humanidade, nos dias que correm como em todos os tempos. Prefiro,
porém, ser honesto e dizer que me mato pelo prazer único de
matar-me, como existem casos de sujeitos que matam um desconhecido
qualquer (não falando da guerra) pelo simples prazer de vê-lo cair
morto ou para experimentar uma arma nova. Sei que é raro isto
acontecer, mas acontece; e o meu caso é exatamente um desses. Enjoei
de mim, como poderia ter enjoado da cara de um vizinho que nunca me
tivesse feito mal em sua vida — e como não sou obrigado a viver de
enjoo, cortei simplesmente o mal pela raiz, eliminando-me da minha
vista. É possível que num dia de primavera e com os bolsos cheios
de dinheiro eu não pensasse em eliminar-me com tanta facilidade,
mesmo porque o homem é suficientemente tolo para contentar-se com
pouca coisa, eterna criança que é; acontece que hoje não é
primavera, nem tenho os bolsos abarrotados de notas de mil francos,
de sorte que me sinto decididamente disposto ao suicídio, como o
estaria para o homicídio também. O certo mesmo seria chamar a este
meu suicídio de homicídio, já que em mim eu mato o homem que não
me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático.
E
já que falo em simpatia, devo deixar claro que morro tão antipático
como sempre vivi, tomando-se por base naturalmente a opinião dos
outros a meu respeito, não a minha própria. A náusea que venho de
sentir pelo meu corpo cheio de esperma, lágrimas e outros humores
trágicos, é uma náusea que, bem ou mal, eu poderia superar com
ajuda de alguma filosofia, desde que me dispusesse a praticar a
necessária ginástica mental diante do espelho; ao passo que a
antipatia que me inspiram os outros, e vice-versa, é algo que nasceu
comigo e será hoje comigo assassinado, e que só pode ter explicação
na perfeita dessemelhança existente entre mim e os meus semelhantes,
entre o meu EU e o que se convencionou chamar o homem comum. Todas as
normas de educação que me tentaram impingir no cérebro tinham por
objetivo convencer-me de que eu e o meu vizinho éramos feitos da
mesma massa e consequentemente da mesma qualidade de alma, havendo
mesmo alguns exagerados que chegavam a proclamar que ambos éramos
filhos do mesmo pai celestial, a cuja imagem e semelhança havíamos
sido feitos em nove meses; a experiência, porém, convenceu-me
exatamente do contrário, e não foi preciso muito tempo para eu
descobrir que não passava de um pequeno monstro dentro da minha
espécie, de alguém que não se parecia nem sequer consigo mesmo nos
diversos momentos e que já nascera fatalmente marcado para a
solidão. E como eu não podia andar metido num escafandro todas as
horas do dia, embora já tenha exercido a profissão de escafandrista
na penúltima guerra, deu-se o entrechoque fatal entre a minha
multidão de almas e a alminha dos meus pseudossemelhantes, com
consequentes ódios e ressentimentos de parte a parte, como ficou
provado nas páginas de meu Diário íntimo e que um dia ainda serão
publicadas. Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição
de antípoda de todos os seres com os quais vivo esbarrando-me pelas
ruas ou mesmo dentro de casa — o que talvez em parte explique meu
contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo, à procura de
outro polo no qual certamente houvesse um outro antípoda à minha
espera.
Mas,
Sr. redator de assuntos fúnebres, nada mais tenho a dizer, por ora,
neste in extremis que já se vai fazendo longo e sem graça, e
que certamente será tido por V. S. na devida consideração,
atirando-o simplesmente à cesta de papéis velhos. Desconhecendo-me
como o Sr. me desconhece, é justo que não queira levar-me a sério
e nem sequer se dê ao trabalho de procurar no mapa onde fica San
Juan de Ia Sierra, onde dentro em pouco entregarei a alma ao Criador
ou a quem lhe faça as vezes, como quem restitui um guarda-chuva que
apenas lhe foi dado em empréstimo. E para que o Sr. me acredite em
parte, e bem assim não se sinta de todo roubado em seu precioso
tempo, deixo-lhe de presente o meu relógio de estimação, que
pertenceu a um enforcado das minhas relações e que marca todos os
minutos da vida com uma precisão realmente cronométrica, apesar de
também já ter sido enforcado com o seu dono.
Funereamente
seu,
...................................................................…
FIM
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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