sábado, 18 de março de 2023

Prólogo | A seara

A festa

1

O vento arrastou as nuvens, a chuva cessou e sob o céu novamente limpo crianças começaram a brincar. As aves de criação saíram dos seus refúgios e voltaram a ciscar no capim molhado. Um cheiro de terra, poderoso, invadia tudo, entrava pelas casas, subia pelo ar. Pingos de água brilhavam sobre as folhas verdes das árvores e dos mandiocais. E uma silenciosa tranquilidade se estendeu sobre a fazenda — as árvores, os animais e os homens. Apenas as vozes álacres das crianças, pelos terreiros, cortavam a calma daquele momento:

Chove, chuva chuverando
Lava a rua do meu bem…

Vestidas de trapos sujos, algumas nuas, barrigudas e magras, as crianças brincavam de roda. Farrapos de nuvem perdiam-se no céu de um azul-claro onde primeiras e leves sombras anunciavam o crepúsculo. Depois da chuva tudo parecia ter uma fisionomia mais alegre. Artur olhou as árvores que se estendiam por detrás da casa-grande, os galhos docemente agitados pela brisa, e sorriu imaginando que as árvores estavam satisfeitas após a chuva tão esperada.
Tive medo esse ano… — resmungou para si mesmo.
Mas a chuva viera bastante em tempo e as colheitas seriam fartas. Artur calculou a alegria que deveria reinar nas casas dos colonos e dos meeiros e foi então que decidiu ir à festa. Esperaria a chegada do rapaz que fora ao arraial, buscar a correspondência e levar umas encomendas, e então daria um pulo na casa do Ataliba, beberia um trago de cachaça em honra da noiva, dançaria uma polca. Andou para a frente da casa-grande onde sua mulher, Felícia, cuidava de uns canteiros de flores.
Vamos na festa de Ataliba…
Tu se decidiu?
Fez que sim com a cabeça, saiu devagar para os lados do armazém. Iria à festa, sim. Os homens estariam satisfeitos, o receio da seca, temor que se renovava a cada ano, estava agora afastado, talvez ainda voltasse a chover naquela mesma noite, apesar de que no céu tão limpo nem mais uma única nuvem restasse. Artur aspirou o cheiro que subia da terra, sorriu novamente. Talvez agora os homens o olhassem com melhores olhos. Quando recebera o convite para a festa na casa de Ataliba disse que ia. Casamento e festa não eram coisas muito comuns pela fazenda e quando se anunciava uma brincadeira em qualquer das casas não se falava noutro assunto nas roças, durante dias, nas conversas do fim da tarde em casa dos trabalhadores, e para Artur sempre havia o problema de que todos queriam algum dinheiro, tinham sempre compras a fazer. Ele recebia os convites, prometia ir. Raramente ia, parecia-lhe que bastava com sua chegada para as festas perderem muito da alegria reinante, os homens não simpatizavam com ele. A esse pensamento Artur suspendeu os ombros num gesto característico. Não era culpa sua. Cumpria com sua obrigação, apertava os homens no trabalho, apertava os meeiros na hora das contas, pagava os preços estipulados, puxava pela fazenda é bem verdade, mas afinal não era para isso que ele era capataz? Qualquer outro que estivesse em seu lugar, como agiria? Gozava da confiança do dr. Aureliano, que se deixava ficar no Rio de Janeiro, vindo à fazenda uma vez na vida, e procurara provar ao patrão ser digno dessa confiança. Nunca a fazenda dera tanto lucro, nem mesmo no tempo do coronel Inácio que morava lá, tomando conta de tudo, decidindo as mínimas coisas. Os meeiros reclamavam, os trabalhadores olhavam-no com olhos cheios de ameaças, mas Artur não se preocupava, costumava dizer que “não tinha medo de caretas”.
No entanto certas coisas doíam-lhe e sabia que na fazenda moravam alguns que, com muito prazer, lhe fariam uma desfeita. Não era segredo para ele que, às escondidas, diziam a seu respeito cobras e lagartos e que muitos homens bebiam em sua tenção. Aquilo não o alegrava tampouco. Gostaria de se dar bem com trabalhadores e colonos, fora trabalhador ele mesmo no tempo do coronel Inácio, se sentiria satisfeito se os homens fossem seus camaradas, viessem, sem ser chamados, tirar um dedo de prosa na varanda da casa-grande, não fechassem a cara quando ele entrasse nas festas. Por isso não ia quase nunca a nenhuma daquelas raras festas, apesar de Felícia gostar de uma dança e ele mesmo, Artur, ser doido por uma conversa, amigo de virar um trago de cachaça.
Chegou ao armazém de grandes portas fechadas, onde estavam os mantimentos para vender a trabalhadores e meeiros. Num quarto aos fundos guardavam os arreios da tropa. Tirou uma chave do bolso, abriu a porta. Os homens não tardariam a chegar do trabalho e como era dia de festa naturalmente haveriam de querer comprar alguma coisa. Pulou o balcão, o livro de assentamento estava em cima da mesa. Tomou maquinalmente dele e começou a virar-lhe as folhas. A conta de Mário Gomes estava grande. Nem com muito tempo de trabalho ele poderia pagar. Tinha que limitar o fornecimento. Mais um que lhe iria amarrar a cara, olhá-lo de banda, cuspir depois dele passar. Que poderia fazer? Virou a folha do livro. Jerônimo com prava pouco, quase só o que vestir, tinha sua mandioca, seu milho, sua batata-doce. Homem de juízo. Também lavrava o melhor pedaço de terra da fazenda. Se Artur fosse o dono daquela terra, ela não estaria em mãos de colono. Mas vinha com Jerônimo desde o tempo do coronel Inácio e o dr. Aureliano, mais preocupado com o Rio que com a fazenda, deixara tudo como encontrara quando da morte do velho. Enfim, isso era com o doutor que era o dono, a Artur bastava a raiva que já lhe dedicavam só por ele cumprir as ordens.
Espiou o céu que escurecia:
Estão largando o trabalho…
Pulou novamente o balcão, atravessou a porta, sentou-se numa pedra que havia próxima ao armazém. Via de longe os meninos, seus filhos, brincando de roda em frente à casa-grande. Ali estavam três, os dois maiores encontravam-se na cidade, no colégio. Seus filhos não seriam ignorantes como os homens que ali viviam, como ele mesmo, Artur, que apenas sabia ler e fazer as quatro operações. Que lhe importava o ódio dos trabalhadores e dos colonos se podia educar seus filhos, mandá-los para o colégio, fazer de um deles doutor, quem sabe?
Mário Gomes vinha andando, o machado na mão. Es tava derrubando, junto com outros, um resto de mata da fazenda. Os meninos cantavam e suas vozes infantis chegavam até Artur, penetravam-lhe no coração.
Mário acocorou-se perto da pedra:
Boas tardes, seu Artur.
Boas tardes, Mário. Afinal choveu…
Deus seja louvado…
Mário Gomes queria comprar alguma coisa mas estava sem jeito, bem se via. As vozes das crianças:

Chove, chuva chuverando.

A festa vai ser boa, Mário?
Festão… — riu.
Tou com vontade de ir…
Vosmecê? Ataliba vai ficar contente… É o casamento da menina dele e, se vosmecê for ir, ele vai engravidar de contente…
Podia não ser verdade mas Artur ouvia as vozes dos filhos cantando, recordava os dois que estavam no colégio interno. Mário Gomes devia muito, mas não era homem para fugir da fazenda e deixar a dívida por pagar:
Tu quer comprar alguma coisa?
Mário olhou espantado:
Era só um feijão e um litro de cachaça…
Artur levantou-se, andou para o armazém. Mário o seguiu ainda desconfiado:
Vai ser uma festa falada…
Começavam a cair as sombras do crepúsculo.

Jorge Amado, in Seara Vermelha

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