Gostava
de jipe, não de automóvel, e dirigia com extrema cautela. Evitava o
centro urbano, e quando tinha de ir até lá, descrevia longas voltas
e terminava a pé, para não se expor ao tráfego desembestado das
ruas principais. Os filhos riam, pondo em dúvida sua capacidade no
volante. Mas todos arrebentavam a máquina, ao usá-la, e ele tinha
como pequena glória nunca ter dado uma batida.
Como
pequena glória. Porque as maiores eram as que lhe vinham do sítio.
Possuíra fazenda, agora tinha sítio. E ficava feliz quando o jipe
tropicador o levava para a modesta pasárgada. Esquecendo-se da
idade, punha exagero de moço — trinta anos depois — em capinar,
plantar, podar; se chovia, plantava mentalmente. Orgulhava-se de
produzir não só frutas tropicais como subtropicais. Um cruzamento
de espécies, determinando novo sabor, nova forma ou colorido, era
uma festa para ele. O sítio confinava com uma fazenda; matava
saudades do antigo latifúndio ouvindo, à distância, o vozeio dos
vaqueiros e o urro do jumento, pontual como um relógio.
Bacharel?
Sim, fizera o curso de Direito, tirara diploma, se necessário lutava
contra empresas poderosas, e vencia, sem ligar muito a isso. Guardava
os livros essenciais ao exercício da profissão, só esses, no
pequeno armário envidraçado. Sua consulta constante era às
sementes, à terra, ao tempo; nem se lembrava mais de que, na
mocidade, cultivara as letras, escrevera poemas em prosa
neossimbolistas, induzira o irmão menor a seguir o ofício de juntar
palavras. Em 1959 bateu um recorde negativo, escrevendo só quatro
cartas, profissionais e concisas.
Anos
e anos escoados na cidadezinha natal, entre problemas pequenos e
grandes que nunca se resolviam. Tentou ajudar a resolvê-los, na
oposição. No governo era impossível; não tinha paixão bastante
para ser injusto ou odioso. Outros disputassem esse ou aquele posto
importante, ele nem vereador quis ser. Mudou de terra e de vida. No
fim, espectador enjoado, dizia aos políticos: “Seria melhor que
fizessem como eu, indo plantar, tirar formiga, limpar galinheiro”.
E
vieram os filhos, muitos. Vieram netos, mais de vinte. O jardim e a
casa no alto da rua palpitavam de barulho. Ele, que em moço mal
suportava o tinir de um copo quebrado, agora enchia os ouvidos e a
alma com aquela algazarra maluca. A filha mais nova, nascida depois
de longo intervalo, encantava-o: um dia, brincando com ela,
esqueceu-se e chamou-a de netinha; era a “rapa do tacho”.
Quarenta anos de família, a companheira não lhe faltara nunca. A
vida estava completa, ele a vivera sem ambição e sem vaidade.
Fora
um belo e desempenado rapaz; agora estava acabado na cama, não havia
nada a fazer senão diminuir-lhe as dores e esperar. “Deixemos isso
para os últimos dias”, ponderava o médico, racionando as
injeções. Virou-se na cama, comentou: “Morrer é muito difícil…”.
E quando falar já era um sacrifício, queria ainda agradecer a
visita, comentar esse ou aquele assunto alheio à sua situação;
gostaria de não dar trabalho a ninguém. Deve ter levado um
sentimento: o de não morrer entre suas plantas.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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