quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O grêmio Artur Azevedo

Quando faleceu Artur Azevedo, o rabiscador destas linhas ainda não havia aprendido a ler, mas, logo aos primeiros avanços no mundo das palavras impressas, seu nome devia impor-se à imaginação infantil. O interior do país conserva ainda (ou conservava, naquele tempo de comunicações escassas, por muitos anos) a lembrança que logo se esgarça no Rio e em São Paulo. Morrendo em 1908, Artur Azevedo continuava perfeitamente vivo na memória de muitos leitores, que guardavam revistas e almanaques antigos, como alimento para as horas de ócio. Ele manejara um instrumento que assegura essa permanência com que o simples humorista ou cronista não pode contar: suas comédias realmente engraçadas, fáceis de representar e guardar, despertavam nas pequenas cidades não só a alegria da descoberta do teatro, como ainda essa outra alegria bem maior, de participar dele, de omitir a rotina cotidiana de maneira ativa, figurando, como ator, num plano irreal. Por isso florescia em Itabira, nos idos de 1915, um Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, a que tive a honra de pertencer por especial benevolência dos diretores, que deram interpretação muito elástica aos estatutos (se não me engano, houve mesmo reforma), pois a sociedade era de adultos, e abriu suas portas a um menino metido a literato.
O Grêmio ficava no segundo pavimento de um velho sobrado, a casa dos Anchietas, família de mudos que viviam de fabricar sapatos no andar térreo. Um pequeno armário envidraçado era toda a biblioteca; o retrato de nosso patrono abençoava-nos gordamente da parede. A bem dizer, só pertenci à associação na parte puramente literária, pois desde cedo verificara minha especial inaptidão para a arte de representar. Já contei isso em outra oportunidade, e não teria graça repeti-lo. Mas os pequenos-grandes sofrimentos advindos dessa incompetência não desviaram o garoto do interesse pelo que se passava no teatro, que era amplo e simpático, e aparecia a seus olhos como a casa mágica, raramente aberta, sempre prestigiosa. Tínhamos ótimos amadores, ou assim os julgávamos. Tito Franklin, prático de farmácia, primava nos papéis cômicos, assim como Maninho Andrade nos dramáticos. A meu ver, a influência saudável de Artur Azevedo sobre os grupos de amadores do interior terá residido particularmente neste ponto: o dramalhão antigo e cacete foi cedendo lugar a peças divertidas, que refletiam realmente nossos costumes, suscitavam a confraternização jovial da plateia e abriam caminho para uma arte teatral tipicamente brasileira no seu espírito e nas suas formas. Essa arte brasileira não veio, ou só agora se anuncia, porque a evolução foi cortada bruscamente pela irrupção do cinema.
Assim, o teatro de minha terra, com seu globo azul no frontispício, dominado pelo voo de uma águia de massa, que era obra muito prima do santeiro Alfredo Duval, e olhando para a igreja matriz do outro lado do paredão, como a dizer-lhe: “Nossos reinos são diferentes; aqui mando eu”, teve de ser adaptado para o cinema de seu Eurico, e com o tempo se iam pela vertente das coisas caducas o grêmio dramático, o grupo de amadores, a notável orquestra mista que tocava as ouvertures. Artur Azevedo foi derrotado, no Brasil afora, por Max Linder, Bertini, William Farnum, Pearl White e outros pesos-pluma. Eram porém trezentos, como no verso de Mário de Andrade, e um autor teatral, sozinho, não poderia manter o interesse do grande público esparso por esses brejões nacionais, ávidos de distração e de sonho barato, na interminável noite onde piscam luzinhas fracas, de longe em longe.
Mas a lembrança dele é grata aos que conheceram ainda os últimos dias de glória dos teatros oitocentistas no interior. E ao cronista, então, que se envaidecia de ingressar meninote num grêmio tão conspícuo de notáveis da terra natal, sob o seu nome popular e amado, o centenário de Artur Azevedo é — desculpem — quase que um pouco o seu próprio centenário. Coisas de 1915! Coisas do século XV…

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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