(Voar:
esforço de desmemória que consiste em extrair da mente todo o peso
do real.)
Voar.
Ah, voar!
Nascemos
sem asas, mas com a capacidade de as sonhar. Existem tantas lendas
antigas sobre homens voadores quantos balões há no céu. Sonhadores
– pessoas com a cabeça nas nuvens, como se dizia antigamente,
antes de andarmos todos realmente com a cabeça entre as nuvens –
costumam ver melhor o que está para vir. Quanto mais alto
estivermos, quanto mais sonharmos, mais longe vemos.
Os
primeiros homens a voar num balão talvez tenham sido os índios
Nazcas, do Peru, ainda antes do nascimento de Jesus Cristo. Sabe-se
isto porque se encontrou um vaso antigo, em barro, representando um
balão de ar quente com dois tripulantes. Em 1975, um grupo de
pesquisadores baseou-se no referido objeto para construir um balão,
confecionado a partir de fibras de plantas conhecidas dos Nazcas. O
balão conseguiu erguer-se no ar. Os gigantescos desenhos de animais
nos planaltos de Nazca, só visíveis do céu – antes do Dilúvio,
claro –, teriam sido produzidos por estes índios voadores.
Enquanto os índios de Nazca exploravam o céu, em balões de ar
quente, os chineses voavam em enormes papagaios de papel. Foi o
famoso general Han Xin, que serviu o imperador Gaozu, duzentos anos
antes de Cristo, quem teve a ideia de prender soldados a papagaios de
papel. Han Xin servia-se dos soldados voadores para observar o
movimento dos exércitos. Estes soldados cantavam, enquanto
sobrevoavam as tropas inimigas. Cantavam cantigas de escárnio.
Troçavam, lá do alto, dos combatentes inimigos.
Han
Xin tinha um filho com sete anos de idade, Han-Li, o qual era capaz
de ficar horas, fascinado, a observar o voo dos pássaros. Han-Li
ficou ainda mais fascinado com os soldados-papagaios. Durante meses
importunou o pai para que o deixasse voar. Finalmente, Han Xin
aquiesceu. O menino foi amarrado ao papagaio mais belo de todos, uma
enorme libélula em tons de vermelho, e largado no ar. Um súbito
golpe de vento rompeu o fio que o prendia ao chão, e o papagaio
desapareceu no azul profundo. Han-Li voou durante dias e noites,
sorvendo a água das nuvens e alimentando-se do que os pássaros lhe
traziam. Atravessou muitos céus, sobrevoando terras estranhas e o
abismo dos mares, até a libélula embater de encontro a uma nuvem,
maior e mais sólida do que qualquer outra que Han-Li vira antes.
Embater é como quem diz – o papagaio rasgou a nuvem, sem ruído,
detendo-se ao fim de uns dez metros, meio de borco, com a quilha
quebrada. O rapaz desamarrou-se e saltou para a nuvem. Os pés
afundaram-se na fofa brancura incandescente. Experimentou dar alguns
passos. Era como se caminhasse sobre flocos de algodão, o que não o
espantou. Espantara-o, até àquele dia, isso sim, que as nuvens não
tivessem a consistência do algodão. Caminhou a manhã inteira.
Encontrou, finalmente, uma aldeia habitada por uma tribo de homens
minúsculos, de cabeça grande, que comunicavam uns com os outros
através de gargalhadas. Viveu naquela nuvem, com os nefelibatas,
durante vinte e dois anos. Ao fim desse tempo, tendo aprendido o
alegre idioma deles (ou seja, tendo aprendido a rir como eles), bem
como muitos dos seus segredos, incluindo a navegação aérea, com
recurso a asas feitas de nuvens prensadas, regressou à China. Ali
descobriu, com horror, que toda a sua família fora assassinada por
ordem da malvada imperatriz Lu Zhi. Han-Li viveu o resto dos seus
dias na pele de um sábio vagabundo, circulando de aldeia em aldeia,
aprendendo e ensinando. Alguns dos seus ensinamentos foram reunidos
num tratado de alquimia, Segredos dos Nefelibatas. O original
perdeu-se. Ao longo dos séculos, contudo, foram sendo produzidas
diversas cópias, todas um pouco diferentes umas das outras. Sobrou
uma única, guardada em Luanda, na nossa biblioteca, que fizemos
traduzir para diversas línguas.
Na
Europa, os primeiros balões de ar quente a erguerem-se no ar, na
presença de testemunhas, terão sido os do padre brasileiro
Bartolomeu de Gusmão, em 1709. Os modelos desenvolvidos por
Bartolomeu de Gusmão eram demasiado pequenos para carregarem um
homem. Alguns incendiaram-se logo. Outros conseguiram cumprir um
curto voo. O rei português D. João V, que assistiu às primeiras
experiências, em Lisboa, não ficou entusiasmado. O invento
pareceu-lhe imprestável e perigoso. Se o monarca português fosse um
sonhador – se tivesse a capacidade de ver ao longe – investindo
no desbravamento do céu, tanto quanto investiu na paixão por
freirinhas ou na colonização do Brasil, a história da aviação
teria sido outra. Foi necessário aguardar até 1783 para que dois
irmãos franceses, Joseph e Etienne Montgolfier, se erguessem num
balão até quase dois quilômetros de altura. Vieram depois os
balões dirigíveis, ou seja, balões cujo voo podia ser controlado,
avançando nesta ou naquela direção, inclusive contra o vento,
graças ao poder dos seus motores.
Em
1928, surgiu o primeiro dos grandes dirigíveis, o LZ 127 Graf
Zeppelin, com duzentos e treze metros de comprimento, cinco motores,
e capaz de transportar vinte e quatro passageiros e trinta e seis
tripulantes. Foi a primeira aeronave a circundar a terra, percorrendo
trinta e três mil quilômetros em sete etapas. Ao longo da sua
carreira, até 1937, o Graf Zeppelin atravessou mais de quinhentos
mil quilômetros de céu, transportando um total de dezassete mil
passageiros. O seu irmão mais novo, o LZ 129 Hindenburg era, para a
época, um elegante milagre de luxo e de tecnologia. Media duzentos e
quarenta e cinco metros de comprimento, quarenta e um metros e meio
de diâmetro, e era capaz de percorrer catorze mil quilômetros, sem
repouso, a uma velocidade de cento e trinta e cinco quilômetros por
hora. Podia transportar até cinquenta passageiros e sessenta e um
tripulantes, tudo isto sustentado por duzentos mil metros cúbicos de
hidrogénio. A sala de jantar tinha janelas oblíquas, de forma que
os passageiros pudessem apreciar a paisagem, lá em baixo, enquanto
comiam, bebiam e conversavam.
Na
noite de seis de maio de 1937, quando se preparava para atracar na
base naval de Lakehurst, em Nova Jérsia, nos Estados Unidos, um
enorme incêndio deflagrou de repente, lançando toda a estrutura ao
solo e matando trinta e seis pessoas, entre passageiros, técnicos e
tripulantes. A tragédia interrompeu, durante longos anos, o reinado
dos grandes dirigíveis. Decorreu quase um século até que as
empresas de aviação se voltassem a interessar pelos aeróstatos,
como uma alternativa mais barata, e infinitamente mais encantadora,
às rápidas e impessoais viagens de avião.
No
início da década de vinte do nosso século, o designer francês
Jean-Marie Massaud apresentou o projeto de um hotel flutuante, o
Manned Cloud, que se revelou um enorme sucesso. O primeiro Manned
Cloud, com o formato de uma enorme baleia branca, incluía uma
biblioteca e um spa e tinha capacidade para receber quarenta
hóspedes. Hoje, a Manned Cloud é a maior rede de hotéis do céu,
com mais de cinquenta unidades. Estes hotéis são utilizados pelos
habitantes ricos das grandes cidades, que ali vão relaxar – “mudar
de céu”, como dizem –, mas servem também para albergar
convenções de dirigentes políticos e eventos comerciais.
Quando
aconteceu o Dilúvio já pairavam no céu todo o tipo de balões e
dirigíveis. Mais importante, a humanidade dispunha de tecnologia
para a construção de aparelhos muitíssimo maiores. O Paris, por
exemplo, mede dez vezes mais do que o LZ 129 Hindenburg. Não é tão
rápido, claro, nem precisa. As cidades aéreas não foram
construídas para competirem umas com as outras em velocidade, e sim
para transportarem o maior número possível de pessoas com
comodidade. Elas competem umas com as outras em luxo e população.
Houve
tempo, à medida que o mar galgava a terra, de construir alguns
milhares de arcas voadoras, dezenas de enormes fábricas flutuantes
de hélio e de hidrogênio, e plataformas para a exploração de
petróleo. Centenas de pessoas trabalham para assegurar o
funcionamento e a manutenção dessas fábricas e plataformas, lá em
baixo, em condições bastante difíceis. São empregos perigosos,
mas muito bem pagos.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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