Na Suíça, em Berna, eu morava na Gerechtigkeitgasse, isto é, Rua da Justiça. Diante de minha casa, na rua, estava a estátua em cores, segurando a balança. Em torno, reis esmagados pedindo talvez uma exceção. No inverno, o pequeno lago no centro do qual estava a estátua, no inverno a água gelada, às vezes quebradiça de fino gelo. Na primavera gerânios vermelhos. As carolas debruçavam-se na água e, balança equilibrada, na água suas sombras vermelhas ressurgiam. Qual das duas imagens era em verdade o gerânio? igual distância, perspectiva certa, silêncio da perfeição. E a rua ainda medieval: eu morava na parte antiga da cidade. O que me salvou da monotonia de Berna foi viver na Idade Média, foi esperar que a neve parasse e os gerânios vermelhos de novo se refletissem na água, foi ter um filho que lá nasceu, foi ter escrito um de meus livros menos gostado, A cidade sitiada, no entanto, relendo-o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando terminei o último capítulo, fui para o hospital dar à luz o menino. Berna é uma cidade livre, por que então eu me sentia tão presa, tão segregada? Eu ia ao cinema todas as tardes, pouco importava o filme. E lembro-me de que às vezes, à saída do cinema, via que já começara a nevar. Naquela hora do crepúsculo, sozinha na cidade medieval, sob os flocos ainda fracos de neve – nessa hora eu me sentia pior do que uma mendiga porque nem ao menos eu sabia o que pedir.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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