sábado, 6 de agosto de 2022

1 | O interior do Alasca


27 de abril de 1992


Saudações de Fairbanks! Esta é a última vez que você terá notícias minhas, Wayne. Cheguei aqui há dois dias. Foi muito difícil pegar carona no território de Yukon. Mas finalmente cheguei. Por favor, devolva toda a minha correspondência para os remetentes. Posso demorar muito até voltar para o Sul. Se esta aventura se revelar fatal e você nunca mais tiver notícias de mim, quero que saiba que você é um grande homem. Caminho agora para dentro da natureza selvagem. Alex.
Cartão-postal recebido por Wayne Westerberg em Cartago, Dakota do Sul

Jim Gallien estava a dois quilômetros e meio de Fairbanks quando viu o caroneiro de pé na neve, ao lado da estrada, polegar bem alto, tremendo de frio no amanhecer do Alasca. Não parecia ser muito velho: dezoito, talvez dezenove anos, no máximo. A ponta de um rifle projetava-se de sua mochila, mas tinha aparência bastante amistosa: um caroneiro com uma Remington semiautomática não é o tipo de coisa que provoque hesitação nos motoristas daquele estado. Gallien parou sua picape no acostamento e mandou o rapaz subir.
O caroneiro jogou sua mochila no chão do Ford e apresentou-se como Alex. “Alex?”, retrucou Gallien, esperando o sobrenome.
Só Alex”, replicou o rapaz, rejeitando claramente a isca. Magro mas rijo, com cerca de um metro e setenta de altura, disse ter 24 anos e ser de Dakota do Sul. Explicou que queria uma carona até o limite do Parque Nacional Denali, onde pretendia caminhar mato adentro e “viver da terra por alguns meses”.
Gallien, eletricista sindicalizado, estava a caminho de Anchorage, 380 quilômetros adiante do Denali pela rodovia George Parks, e disse a Alex que o deixaria onde quisesse. A mochila dele não parecia pesar mais do que doze ou treze quilos, o que surpreendeu Gallien – caçador experiente, acostumado às florestas –, pois era um volume muito pequeno para quem pretendia ficar vários meses no mato, especialmente tão no início da primavera.
Ele não estava levando nada da comida e do equipamento que se espera que alguém carregue naquele tipo de viagem”, relembra Gallien.
O sol surgiu. Enquanto desciam das cristas reflorestadas acima do rio Tanana, Alex olhava para o terreno pantanoso, coberto de juncos e musgos e varrido pelo vento que se estendia para o sul. Gallien se perguntava se não teria dado carona para um daqueles birutas dos outros 48 estados do Sul que vinham para o Norte realizar as arriscadas fantasias de Jack London. Há muito tempo que o Alasca atrai sonhadores e desajustados, gente que acha que a vastidão imaculada da Última Fronteira irá preencher todos os vazios de sua vida. Porém, o mato é um lugar que não perdoa, que não dá a mínima para a esperança ou o desejo.
As pessoas de fora”, relata Gallien com sua fala arrastada e sonora, “pegam um exemplar da revista Alaska, folheiam e ficam pensando: ‘Ei, vou para lá, viver da terra, levar uma boa vida’. Mas quando chegam aqui e entram de verdade no mato, bem, aí não é como a revista tinha contado. Os rios são grandes e rápidos. Os mosquitos comem você vivo. Na maioria dos lugares, não há muitos animais para caçar. Viver no mato não é um piquenique.”
De Fairbanks até a beira do Parque Denali era uma viagem de duas horas. Quanto mais conversavam, menos Alex parecia maluco. Era agradável e bem-educado. Bombardeou o motorista com perguntas sensatas sobre quais pequenos animais de caça vivem na região, que tipo de frutas silvestres poderia comer – “esse tipo de coisa”.
Ainda assim, Gallien estava preocupado. Alex admitiu que o único alimento em sua mochila era um saco de quatro quilos e meio de arroz. Seu equipamento parecia excessivamente insuficiente para as condições duras do interior, que, em abril, ainda está soterrado pela neve do inverno. As botas baratas de Alex não eram impermeáveis nem bem isoladas. Seu rifle era apenas de calibre 22, muito pequeno para quem pensasse em matar animais grandes como alces e caribus, os quais teria de comer se quisesse permanecer muito tempo na região. Não tinha machadinha, protetor contra insetos, raquetes de neve, bússola. O único auxílio de orientação que trazia era um mapa rodoviário estadual todo rasgado que surrupiara de um posto de gasolina.
A 150 quilômetros de Fairbanks, a rodovia começa a subir os contrafortes da cadeia do Alasca. Enquanto o carro atravessava uma ponte sobre o rio Nenana, Alex olhou para a correnteza forte e disse que tinha medo da água: “Há um ano, no México, eu estava numa canoa no mar e quase me afoguei durante uma tempestade”.
Um pouco mais tarde, ele pegou seu mapa e apontou para uma linha vermelha que cruzava a estrada perto de Healy, uma cidade de mineração de carvão. Ela representava uma rota chamada Stampede Trail [trilha do Estouro da Boiada]. Raramente percorrida, nem aparece na maioria dos mapas rodoviários do Alasca. Mas no mapa de Alex, a linha pontilhada serpenteava para oeste da rodovia Parks por cerca de sessenta quilômetros até sumir no meio da região selvagem e sem trilhas situada ao norte do monte McKinley. Era para lá que pretendia ir, anunciou Alex.
Gallien achou que o plano do caroneiro era temerário e tentou com insistência dissuadi-lo: “Falei que não era fácil caçar no lugar aonde ele estava indo, que poderia passar dias sem matar animal algum. Quando isso não funcionou, tentei assustá-lo com histórias de ursos. Disse-lhe que uma 22 não faria provavelmente nada a um urso pardo, exceto deixá-lo furioso. Alex não parecia muito preocupado. ‘Subo numa árvore’, foi tudo o que disse. Então expliquei que as árvores não crescem muito naquela parte do estado, que um urso podia derrubar um abeto fino e pequeno num segundo. Mas ele não recuava um milímetro. Tinha resposta para tudo que joguei em cima dele”.
Gallien ofereceu-se para levá-lo até Anchorage, comprar-lhe um equipamento decente e depois trazê-lo de volta até onde quisesse.
Não, mas de qualquer forma, obrigado”, respondeu Alex. “Eu me viro com o que tenho.”
Gallien perguntou se ele tinha licença de caça.
Claro que não”, desdenhou Alex. “O jeito como eu me alimento não é da conta do governo. Fodam-se as regras estúpidas deles.”
Quando Gallien perguntou se seus pais ou algum amigo sabiam o que pretendia fazer - se havia alguém que acionaria o alarme se ele encontrasse problemas e se atrasasse, Alex respondeu tranquilamente que não, que ninguém sabia de seus planos, que na verdade não falava com sua família havia quase dois anos. “Tenho certeza absoluta de que não vou encontrar nada que não possa enfrentar sozinho”, assegurou a Gallien.
Simplesmente não tinha como convencer o cara a desistir”, lembra Gallien. “Ele estava decidido. Muito entusiasmado mesmo. A palavra que vem à mente é excitado. Mal podia esperar para entrar no mato e começar.”
A três horas de distância de Fairbanks, Gallien saiu da rodovia e entrou com seu surrado 4 por 4 numa estrada secundária coberta de neve. Nos primeiros quilômetros, a Stampede Trail estava bem nivelada e passava por cabanas espalhadas por bosques de abetos e choupos. Depois dos últimos chalés de madeira, no entanto, a estrada deteriorava-se rapidamente. Descaracterizada e cheia de amieiros, transformava-se numa trilha grosseira, sem manutenção.
No verão, ela seria ruim, mas passável; agora, estava tomada por meio metro de neve mole de primavera. A quinze quilômetros da rodovia, percebendo que ficaria preso se fosse adiante, Gallien parou seu veículo no topo de uma colina baixa. Os cumes gelados da cadeia de montanhas mais alta da América do Norte brilhavam no horizonte sudoeste.
Alex insistiu em dar a Gallien seu relógio, seu pente e o que disse ser todo o seu dinheiro: 85 centavos em moedas. “Não quero seu dinheiro e já tenho relógio”, protestou Gallien.
Se você não ficar com ele, vou jogá-lo fora”, replicou alegremente o rapaz. “Não quero saber que horas são. Não quero saber que dia é nem onde estou. Nada disso importa.”
Antes que Alex descesse da picape, Gallien pegou atrás do banco um velho par de botas de borracha e persuadiu o rapaz a levá-las. “Eram grandes demais para ele”, relembra Gallien. “Mas eu disse: use dois pares de meias e seus pés vão ficar meio quentes e secos.”
Quanto lhe devo?”
Não se preocupe com isso”, respondeu Gallien. Deu então ao rapaz um pedaço de papel com seu telefone, que Alex enfiou cuidadosamente em sua carteira de náilon.
Se você sair dessa vivo, me telefone e eu direi como me devolver as botas.”
A esposa de Gallien dera-lhe dois sanduíches de queijo e atum e um saco de com chips para o almoço; ele convenceu o jovem caroneiro a aceitar também a comida. Alex tirou uma câmera da mochila e pediu que Gallien tirasse uma fotografia dele com seu rifle no começo da trilha. Depois, com um amplo sorriso, desapareceu pelo caminho coberto de neve. A data era 28 de abril de 1992.
Gallien manobrou a picape, retomou à rodovia Parks e continuou na direção de Anchorage. Poucos quilômetros adiante, chegou à pequena comunidade de Healy, onde a Força Pública do Alasca mantém um posto. Gallien pensou por um momento em parar e contar às autoridades sobre Alex, mas mudou de ideia “Imaginei que ele estaria bem”, explica. “Pensei que provavelmente ficaria com fome muito cedo e voltaria para a estrada. É o que qualquer pessoa normal faria.”

Jon Krakauer, in Na Natureza Selvagem

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