Gordinha
mora com o avô; treina para a apresentação de ginástica do
ginásio.
Você
vai se assombrar com o tanto que se preocupará com o sucesso da
menininha. Bausch é capaz de provocar tamanha tensão com um
episódio aparentemente tão sem importância (embora obviamente esse
seja o ponto) e isto deve ser a lição: uma exibição de ginástica
pode ter o mesmo drama de um desastre de avião.
Eu
não me deparei com essa história até ter me tornado pai, então
não posso dizer se teria gostado tanto a.M. (antes de Maya). Eu
passei por períodos na vida em que gostei mais de contos. Um desses
períodos coincidiu com quando você ainda era bebê — que tempo eu
tinha para romances, minha querida?
—A.J.F.
Maya
geralmente acorda antes de o sol nascer, quando o único som é A.J.
roncando no outro quarto. Em seu pijama com pezinhos, ela atravessa a
sala com cuidado até o quarto dele. De primeira, ela sussurra:
“Papai, papai”. Se não funciona, chama pelo nome, e se isso
também não dá certo, grita. E se palavras não são o suficiente,
pula na cama, embora preferisse não ter que apelar para esse tipo de
estripulia. Agora, ele acorda ainda no nível da conversa. “Acorda”,
ela diz. “Lá embaixo.”
O
lugar que Maya mais ama é lá embaixo porque lá embaixo é onde
fica a livraria, e a livraria é o melhor lugar do mundo.
“Calça”,
A.J. murmura. “Café.” Seu bafo tem cheiro de meias molhadas de
neve.
Há
dezesseis degraus antes de chegar na loja. Maya desce arrastando o
bumbum, pois suas pernas são muito curtas para descer com confiança.
Ela marcha cambaleante pela livraria, passando pelos livros que não
têm figuras, pelos cartões comemorativos. Passa as mãos pelas
revistas, girando o estande com marca-páginas. Bom dia, revistas!
Bom dia, marca-páginas! Bom dia, livros! Bom dia, loja!
As
paredes da livraria possuem painéis de madeira da altura da sua
cabeça, e acima é papel de parede azul. Maya não consegue alcançar
o papel a não ser com uma cadeira. O papel de parede tem uma estampa
saliente e espiralada, é gostoso esfregar o rosto nela. Ela vai ler
a palavra adamascado num livro, certo dia, e pensar: Sim, é claro
que chama assim. Por outro lado, a palavra forro vai ser uma enorme
decepção.
A
loja tem quinze Mayas de largura e vinte de comprimento. Ela sabe
disso pois certa vez passou a tarde medindo, deitando o corpo pelo
chão. Que bom que não tem mais de trinta Mayas, porque era o máximo
que conseguia contar no dia em que tomou as medidas.
Do
seu ponto de vista privilegiado no chão, as pessoas são sapatos. No
verão, sandálias. No inverno, botas. Molly Klock às vezes usa
botas de plataforma vermelhas que vão até os joelhos. A.J. é tênis
preto ou de correr. Lambiase usa sapato preto social. Ismay usa
sapatilhas coloridas. Daniel Parish usa mocassim marrom com uma
moedinha.
Antes
de a loja abrir às dez, ela vai para a sua posição, que é o
corredor com livros ilustrados.
A
primeira abordagem de Maya ao livro é pelo cheiro. Ela tira a
sobrecapa, segura perto do rosto e embrulha sua cabeça com ele.
Livros geralmente têm cheiro do sabonete do papai, grama, o mar, a
mesa da cozinha e queijo.
Ela
estuda as figuras e tenta arrancar a história delas. É trabalhoso,
mas mesmo aos três anos, reconhece alguns dos tropos. Por exemplo,
animais nem sempre são animais em livros ilustrados. Às vezes
representam pais e filhos. Um urso de gravata pode ser um pai. Um
urso com peruca loira pode ser a mãe. Dá pra saber muito de uma
história pelas figuras, mas as figuras às vezes enganam. Ela
preferiria saber as palavras.
Sem
interrupções, consegue passar por sete livros numa manhã. No
entanto, sempre há interrupções. Em geral, Maya gosta dos clientes
e tenta ser educada com eles. Ela entende o negócio que possui com
A.J. Quando crianças aparecem no seu corredor, sempre enfia um livro
em suas mãos. As crianças vão até o caixa e, na maior parte das
vezes, o guardião que as acompanha compra o livro que elas seguram.
“Ora, ora, você que escolheu?”, o pai perguntará.
Certa
vez, alguém perguntou a A.J. se a Maya era dele. “Vocês dois são
escuros, mas não o mesmo tipo de preto.” Maya se lembra porque o
comentário fez A.J. usar um tom de voz que nunca tinha usado com um
cliente.
“O
que é o mesmo tipo de preto?”, A.J. perguntou.
“Não,
não quis ofender”, a pessoa falou e depois os chinelos de dedo
saíram pela porta, sem comprar nada.
O
que é “o mesmo tipo de preto”? Ela olha para as mãos e pensa.
Ela
pensa sobre algumas coisas.
Como
se aprende a ler?
Por
que adultos gostam de livros sem figuras?
O
papai vai morrer?
O
que tem pro almoço?
O
almoço é por volta da uma e vem da lanchonete. Ela come um queijo
quente. A.J., um sanduíche de peru. Ela gosta de ir à lanchonete,
mas sempre segura a mão de A.J. Não quer ser esquecida na
lanchonete.
À
tarde, ela desenha resenhas. Uma maçã significa que o cheiro do
livro foi aprovado. Um pedaço de queijo significa que o livro é
perfeito. Um autorretrato mostra que ela gosta da ilustração. Ela
assina MAYA e depois mostra para A.J.
Ela
gosta de escrever seu nome.
MAYA.
Ela
sabe que seu sobrenome é Fikry, mas isso não sabe escrever ainda.
Às
vezes, depois que os clientes e a Molly foram embora, pensa que ela e
A.J. são as únicas pessoas no mundo. Ninguém mais parece tão real
quanto ele. Outras pessoas são sapatos para diferentes estações,
nada mais. A.J. alcança o papel de parede sem cadeira, consegue
mexer no caixa enquanto fala ao telefone, consegue levantar caixas
pesadas de livros acima da cabeça, usa palavras absurdamente
compridas, sabe tudo sobre tudo. Quem pode ser comparado a A.J.
Fikry?
Ela
quase nunca pensa na mãe.
Sabe
que a mãe está morta. E sabe que morto é quando você dorme e não
acorda mais. Ela fica muito triste pela mãe porque quem não acorda
não desce a escada até a livraria de manhã.
A
Maya sabe que a mãe a deixou na Island Books. Mas talvez isso é o
que acontece com todas as crianças de certa idade. Algumas crianças
são deixadas em lojas de sapatos. Outras são deixadas em lojas de
brinquedos. E algumas são deixadas em lanchonetes. E sua vida
inteira é determinada pela loja onde foi deixada. Não quer morar na
lanchonete.
Mais
tarde, quando ficar mais velha, vai pensar mais na mãe.
À
noite, A.J. troca de sapato e a coloca num carrinho. Está ficando
apertado, mas ela gosta do passeio, então não reclama. Gosta de
ouvir a respiração do A.J. E gosta de ver o mundo passando tão
rápido. E, às vezes, ele canta. E, às vezes, conta histórias. Ele
conta sobre como tinha um livro chamado Tamerlane que valia
mais do que todos os livros da loja juntos.
Tamerlane,
ela diz, gostando do mistério e da melodia das sílabas.
“E
foi dele que tirei seu nome do meio.”
À
noite, A.J. a coloca na cama. Ela não gosta de ir pra cama, mesmo
quando está cansada. Oferecer uma história é a melhor maneira que
A.J. encontra para persuadi-la a dormir. “Qual?”, ele pergunta.
Ele
vem insistindo para que ela pare de escolher O monstro no fim do
livro, então, para agradar, responde: “Chapéus à venda”.
Ela
já conhece a história, mas não entende. É sobre um homem que
vende chapéus coloridos. Ele tira um cochilo e seus chapéus são
roubados por macacos. Ela espera que isso nunca aconteça com A.J.
Maya
franze a testa e aperta o braço de A.J.
“O
que foi?”, A.J. pergunta.
Por
que macacos querem chapéus?, ela reflete. Macacos são animais.
Talvez os macacos, como o urso de peruca que é a mãe, representem
outra coisa, mas o que…? Ela tem pensamentos, mas não ideias.
“Lê”,
diz.
Às
vezes o A.J. chama uma mulher para vir à loja ler livros em voz alta
pra Maya e pra outras crianças. A mulher gesticula e faz caretas,
abaixando e levantando a voz para o efeito dramático. Maya quer
falar pra ela relaxar. Está acostumada com o jeito que A.J. lê:
suave e baixo. Está acostumada com ele.
A.J.
lê: “… no alto, um amontoado de chapéus vermelhos”.
A
figura mostra um homem com muitos chapéus coloridos.
Maya
coloca a mão sobre a de A.J. para impedir que ele vire a página.
Ela escaneia a página. De repente, sabe que v-e-r-m-e-l-h-o é
vermelho, sabe como sabe que seu nome é Maya, como sabe que A.J.
Fikry é seu pai, como sabe que o melhor lugar do mundo é a Island
Books.
“O
que foi?”, ele pergunta.
“Vermelho”,
ela diz. Pega a mão dele e move para cima da palavra.
Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry
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