quarta-feira, 3 de agosto de 2022

A lua vem da Ásia | Capítulo Vinte

Há momentos em que me sinto mais lúcido, e há outros em que pelo contrário sinto uma presença estranha dentro de mim, como se devêssemos ser gêmeos e houvéssemos nascido dois num corpo só. Esse meu irmão sepulto em mim leva-me a cenas de verdadeiro ridículo, quando não de desespero, como aconteceu ainda há pouco, quando eu queria dormir e ele teimava em ensaiar um novo passo de bale, rodopiando pelo quarto inteiramente nu. Se há os que acreditam em metempsicose, eu tenho o direito de acreditar nessa dualidade de meu ser, ou antes, nessa existência oculta de meu irmão gêmeo dentro de mim e que um dia brotará de meu corpo como um dente de siso retardado. Muitos me julgarão excêntrico por isso, e eu sei que julgam, mas o fato é que sou apenas sincero e não costumo ocultar as perplexidades a que me submete minha natureza, como fazem as outras pessoas.
As outras pessoas, aliás, se resumem para mim numa pessoa só: o mundo — ou, como se diz geralmente, todo mundo — e é meu dever preservar minha individualidade (ou minha dualidade, pouco importa) contra a presença esmagadora desse monstro de mil cabeças que tenta pisar-me e reduzir-me à ínfima condição de um palito, embora de fósforo. Aprecio imensamente certas pessoas — o Dr. Keither é uma delas, com sua filosofia e seu Premio Nobel de Química de 1952 — mas sinceramente não vejo por que deva renunciar ao que sou, na presença de seres estranhos e que certamente terão sua própria individualidade a resguardar. Nesse ponto não cedo um só fio do meu cabelo, e estou disposto a sofrer todos os martírios e torturas que queiram impor-me aqui ou em qualquer outra parte do mundo, como de resto tem acontecido desde que nasci. Morrerei pobre e confinado entre estas quatro paredes, sob a pecha de espião ou de excêntrico nocivo aos altos interesses do Estado e dos que vivem à custa do Estado, o que vem a dar na mesma; mas morrerei eu mesmo e mais ninguém — eu e meu irmão gêmeo, quando muito — e essa fidelidade ao meu corpo será o meu único título de glória, se é que preciso de título de glória para alguma coisa.
Certa vez, no Exército, um velho sargento, sob pretexto de incutir-me no espírito a teoria do tiro, agarrou-me pelo pescoço e sacudiu-me violentamente várias vezes, levantando-me a uma altura razoável do solo. Deixei-o sacudir-me à vontade, sem uma só palavra de protesto, mesmo porque o estrangulamento fora muito bem feito e eu mal conseguia respirar; assim, porém, que me vi em terra firme, desfechei-lhe com os dedos duas violentas estocadas bem no meio dos olhos, cegando-o imediatamente. Foi reformado com o soldo integral, segundo soube, e eu continuei ileso e cada vez mais cioso de minha ignorância em matéria de balística e de carnificinas heroicas, como de resto espero viver até o fim dos meus dias.
De outra feita foi uma arquiduquesa húngara, de vida fácil mas não tão fácil quanto parece, e que se apaixonou pelo meu corpo em plena cidade de Cracóvia, oferecendo-me em troca seus belos seios, sua voz de contralto e um perfume de bosque úmido que jamais voltei a encontrar em outra mulher, viva ou morta. Enquanto se contentou em usar do meu corpo como se fora uma propriedade sua, nada tive a objetar-lhe, mesmo porque os tempos eram difíceis e a sua cama e a sua mesa eram perfeitamente desfrutáveis; desde porém que certa noite, entre uma cópula e outra, quis convencer-me da necessidade de eu participar de um complô terrorista em sua bela pátria, invocando para isso razões sentimentais e outras que não me diziam respeito, abandonei-a imediatamente e num acesso de gargalhadas atirei-lhe com um vaso de flores na cabeça, o que me custou dois dias e meio de prisão.
Também no Conservatório de Varsóvia, onde aprendi a tocar berimbau com o professor Hepsteimm, tive oportunidade de demonstrar, de uma feita, meu irrestrito apego à minha liberdade moral, quando fiz voar pelos ares a tuba e a clarineta da Orquestra Sinfônica Nacional, com um pontapé endereçado a um músico idiota que me chamara de estrangeiro, eu que sou o mais perfeito exemplar de cidadão do mundo de que já se teve notícia até hoje. Criei um ligeiro caso internacional com essa minha atitude ao mesmo tempo intempestiva e tempestuosa, mas pelo menos me mantive íntegro e soberano em minha profunda individualidade, e não tive por que envergonhar-me depois diante do espelho.
Agora, nesta sexagésima milionésima insônia que atravesso de olhos abertos e coração angustiado, resta-me quando menos esta certeza de que sou realmente eu e mais ninguém — ou, ainda uma vez, eu e o meu irmão gêmeo ainda sepulto em mim e que um dia virá à tona como um náufrago de três dias. As paredes me prendem dentro deste quarto de hotel sem nenhuma beleza; proíbem-me por motivos políticos de sair à rua e de saber inclusive em que cidade exatamente estou, eu que sou globe-trotter e amante de todos os horizontes; submetem-me ao vexame de ter que tomar todas as noites uma dose de soro da juventude, eu que nem sequer ainda estou velho e não pretendo jamais voltar a ser jovem algum dia, eu que nunca o fui realmente; espionam-me por todos os cantos a até quando estou a sós dentro do gabinete sanitário, como se eu fosse um criminoso comum e não um hóspede com todos os direitos que a legislação dos hóspedes lhe garante, seja aqui como na Cochinchina; uma coisa porém eles não me tomam, eles os espiões de todas as nacionalidades, as prostitutas húngaras ou mesmo iugoslavas, os falsos amigos e sobretudo os verdadeiros, os membros de todas as orquestras sinfônicas do universo, os gaiatos da polícia nacional e internacional, os boxeurs e os lutadores de jiu-jítsu de todas as categorias ou faixas: e é esta consciência que trago de eu ser apenas e cada vez mais uma propriedade minha, exclusiva, indivisível, una, prima inter pares, nec plus ultra, e mais citações latinas que se façam necessárias e convenham como fecho a um capítulo tão importante como este, sem dúvida o mais importante que já escrevi e escreverei em toda a minha vida de cavaleiro andante.

Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia

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