Há
momentos em que me sinto mais lúcido, e há outros em que pelo
contrário sinto uma presença estranha dentro de mim, como se
devêssemos ser gêmeos e houvéssemos nascido dois num corpo só.
Esse meu irmão sepulto em mim leva-me a cenas de verdadeiro
ridículo, quando não de desespero, como aconteceu ainda há pouco,
quando eu queria dormir e ele teimava em ensaiar um novo passo de
bale, rodopiando pelo quarto inteiramente nu. Se há os que acreditam
em metempsicose, eu tenho o direito de acreditar nessa dualidade de
meu ser, ou antes, nessa existência oculta de meu irmão gêmeo
dentro de mim e que um dia brotará de meu corpo como um dente de
siso retardado. Muitos me julgarão excêntrico por isso, e eu sei
que julgam, mas o fato é que sou apenas sincero e não costumo
ocultar as perplexidades a que me submete minha natureza, como fazem
as outras pessoas.
As
outras pessoas, aliás, se resumem para mim numa pessoa só: o mundo
— ou, como se diz geralmente, todo mundo — e é meu dever
preservar minha individualidade (ou minha dualidade, pouco importa)
contra a presença esmagadora desse monstro de mil cabeças que tenta
pisar-me e reduzir-me à ínfima condição de um palito, embora de
fósforo. Aprecio imensamente certas pessoas — o Dr. Keither é uma
delas, com sua filosofia e seu Premio Nobel de Química de 1952 —
mas sinceramente não vejo por que deva renunciar ao que sou, na
presença de seres estranhos e que certamente terão sua própria
individualidade a resguardar. Nesse ponto não cedo um só fio do meu
cabelo, e estou disposto a sofrer todos os martírios e torturas que
queiram impor-me aqui ou em qualquer outra parte do mundo, como de
resto tem acontecido desde que nasci. Morrerei pobre e confinado
entre estas quatro paredes, sob a pecha de espião ou de excêntrico
nocivo aos altos interesses do Estado e dos que vivem à custa do
Estado, o que vem a dar na mesma; mas morrerei eu mesmo e mais
ninguém — eu e meu irmão gêmeo, quando muito — e essa
fidelidade ao meu corpo será o meu único título de glória, se é
que preciso de título de glória para alguma coisa.
Certa
vez, no Exército, um velho sargento, sob pretexto de incutir-me no
espírito a teoria do tiro, agarrou-me pelo pescoço e sacudiu-me
violentamente várias vezes, levantando-me a uma altura razoável do
solo. Deixei-o sacudir-me à vontade, sem uma só palavra de
protesto, mesmo porque o estrangulamento fora muito bem feito e eu
mal conseguia respirar; assim, porém, que me vi em terra firme,
desfechei-lhe com os dedos duas violentas estocadas bem no meio dos
olhos, cegando-o imediatamente. Foi reformado com o soldo integral,
segundo soube, e eu continuei ileso e cada vez mais cioso de minha
ignorância em matéria de balística e de carnificinas heroicas,
como de resto espero viver até o fim dos meus dias.
De
outra feita foi uma arquiduquesa húngara, de vida fácil mas não
tão fácil quanto parece, e que se apaixonou pelo meu corpo em plena
cidade de Cracóvia, oferecendo-me em troca seus belos seios, sua voz
de contralto e um perfume de bosque úmido que jamais voltei a
encontrar em outra mulher, viva ou morta. Enquanto se contentou em
usar do meu corpo como se fora uma propriedade sua, nada tive a
objetar-lhe, mesmo porque os tempos eram difíceis e a sua cama e a
sua mesa eram perfeitamente desfrutáveis; desde porém que certa
noite, entre uma cópula e outra, quis convencer-me da necessidade de
eu participar de um complô terrorista em sua bela pátria, invocando
para isso razões sentimentais e outras que não me diziam respeito,
abandonei-a imediatamente e num acesso de gargalhadas atirei-lhe com
um vaso de flores na cabeça, o que me custou dois dias e meio de
prisão.
Também
no Conservatório de Varsóvia, onde aprendi a tocar berimbau com o
professor Hepsteimm, tive oportunidade de demonstrar, de uma feita,
meu irrestrito apego à minha liberdade moral, quando fiz voar pelos
ares a tuba e a clarineta da Orquestra Sinfônica Nacional, com um
pontapé endereçado a um músico idiota que me chamara de
estrangeiro, eu que sou o mais perfeito exemplar de cidadão do mundo
de que já se teve notícia até hoje. Criei um ligeiro caso
internacional com essa minha atitude ao mesmo tempo intempestiva e
tempestuosa, mas pelo menos me mantive íntegro e soberano em minha
profunda individualidade, e não tive por que envergonhar-me depois
diante do espelho.
Agora,
nesta sexagésima milionésima insônia que atravesso de olhos
abertos e coração angustiado, resta-me quando menos esta certeza de
que sou realmente eu e mais ninguém — ou, ainda uma vez, eu e o
meu irmão gêmeo ainda sepulto em mim e que um dia virá à tona
como um náufrago de três dias. As paredes me prendem dentro deste
quarto de hotel sem nenhuma beleza; proíbem-me por motivos políticos
de sair à rua e de saber inclusive em que cidade exatamente estou,
eu que sou globe-trotter e amante de todos os horizontes; submetem-me
ao vexame de ter que tomar todas as noites uma dose de soro da
juventude, eu que nem sequer ainda estou velho e não pretendo jamais
voltar a ser jovem algum dia, eu que nunca o fui realmente;
espionam-me por todos os cantos a até quando estou a sós dentro do
gabinete sanitário, como se eu fosse um criminoso comum e não um
hóspede com todos os direitos que a legislação dos hóspedes lhe
garante, seja aqui como na Cochinchina; uma coisa porém eles não me
tomam, eles os espiões de todas as nacionalidades, as prostitutas
húngaras ou mesmo iugoslavas, os falsos amigos e sobretudo os
verdadeiros, os membros de todas as orquestras sinfônicas do
universo, os gaiatos da polícia nacional e internacional, os boxeurs
e os lutadores de jiu-jítsu de todas as categorias ou faixas: e é
esta consciência que trago de eu ser apenas e cada vez mais uma
propriedade minha, exclusiva, indivisível, una, prima inter pares,
nec plus ultra, e mais citações latinas que se façam necessárias
e convenham como fecho a um capítulo tão importante como este, sem
dúvida o mais importante que já escrevi e escreverei em toda a
minha vida de cavaleiro andante.
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
Nenhum comentário:
Postar um comentário