sexta-feira, 5 de agosto de 2022

A prova do algodão

Segundo a Carta do Direitos Humanos, no seu artigo 12 “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida, na sua família ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”. E mais: “Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à proteção da lei”. Assim está escrito. O papel exibe, entre outras, a assinatura do representante dos Estados Unidos, a qual assumiria, por via de consequência, o compromisso dos Estados Unidos no que toca ao cumprimento efetivo das disposições contidas na mesma Carta, porém, para vergonha sua e nossa, essas disposições nada valem, sobretudo quando a mesma lei que deveria proteger, não só não o faz, como homologa com a sua autoridade as maiores arbitrariedades, incluindo aquelas que o dito artigo 12 enumera para condenar. Para os Estados Unidos qualquer pessoa, seja emigrante ou simples turista, indiferentemente da sua atividade profissional, é um delinquente potencial que está obrigado, como em Kafka, a provar a sua inocência sem saber de que o acusam. Honra, dignidade, reputação, são palavras hilariantes para os cães cerberos que guardam as entradas do país. Já conhecíamos isto, já o havíamos experimentado em interrogatórios conduzidos intencionalmente de forma humilhante, já tínhamos sido olhados pelo agente de turno como se fôssemos o mais repugnante dos vermes. Enfim, já estávamos habituados a ser maltratados.
Mas agora surge algo novo, uma volta mais ao parafuso opressor. A Casa Branca, onde se hospeda o homem mais poderoso do planeta, como dizem os jornalistas em crise de inspiração, a Casa Branca, insistimos, autorizou os agentes de polícia das fronteiras a analisar e revisar documentos de qualquer cidadão estrangeiro ou norte-americano, ainda que não existam suspeitas de que essa pessoa tenha intenção de participar num atentado. Tais documentos serão conservados “por um razoável espaço de tempo” numa imensa biblioteca onde se guarda todo o tipo de dados pessoais, desde simples agendas de contatos a correios eletrônicos supostamente confidenciais. Ali se irá guardando também uma quantidade incalculável de cópias de discos duros dos nossos computadores de cada vez que nos apresentarmos para entrar nos Estados Unidos por qualquer das suas fronteiras. Com todos os seus conteúdos: trabalhos de investigação científica, tecnológica, criativa, teses acadêmicas, ou um simples poema de amor. “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada”, diz o pobre do artigo 12. E nós dizemos: veja-se o pouco que vale a assinatura de um presidente da maior democracia do mundo.
Aqui está. Praticamos sobre os Estados Unidos a infalível prova do algodão, e eis o que verificamos: não se limitam a estar sujos, estão sujíssimos.

José Saramago, in O caderno (29/09/2008)

Nenhum comentário:

Postar um comentário