Segundo
a Carta do Direitos Humanos, no seu artigo 12 “Ninguém sofrerá
intromissões arbitrárias na sua vida, na sua família ou na sua
correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”. E mais:
“Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à
proteção da lei”. Assim está escrito. O papel exibe, entre
outras, a assinatura do representante dos Estados Unidos, a qual
assumiria, por via de consequência, o compromisso dos Estados Unidos
no que toca ao cumprimento efetivo das disposições contidas na
mesma Carta, porém, para vergonha sua e nossa, essas disposições
nada valem, sobretudo quando a mesma lei que deveria proteger, não
só não o faz, como homologa com a sua autoridade as maiores
arbitrariedades, incluindo aquelas que o dito artigo 12 enumera para
condenar. Para os Estados Unidos qualquer pessoa, seja emigrante ou
simples turista, indiferentemente da sua atividade profissional, é
um delinquente potencial que está obrigado, como em Kafka, a provar
a sua inocência sem saber de que o acusam. Honra, dignidade,
reputação, são palavras hilariantes para os cães cerberos que
guardam as entradas do país. Já conhecíamos isto, já o havíamos
experimentado em interrogatórios conduzidos intencionalmente de
forma humilhante, já tínhamos sido olhados pelo agente de turno
como se fôssemos o mais repugnante dos vermes. Enfim, já estávamos
habituados a ser maltratados.
Mas
agora surge algo novo, uma volta mais ao parafuso opressor. A Casa
Branca, onde se hospeda o homem mais poderoso do planeta, como dizem
os jornalistas em crise de inspiração, a Casa Branca, insistimos,
autorizou os agentes de polícia das fronteiras a analisar e revisar
documentos de qualquer cidadão estrangeiro ou norte-americano, ainda
que não existam suspeitas de que essa pessoa tenha intenção de
participar num atentado. Tais documentos serão conservados “por um
razoável espaço de tempo” numa imensa biblioteca onde se guarda
todo o tipo de dados pessoais, desde simples agendas de contatos a
correios eletrônicos supostamente confidenciais. Ali se irá
guardando também uma quantidade incalculável de cópias de discos
duros dos nossos computadores de cada vez que nos apresentarmos para
entrar nos Estados Unidos por qualquer das suas fronteiras. Com todos
os seus conteúdos: trabalhos de investigação científica,
tecnológica, criativa, teses acadêmicas, ou um simples poema de
amor. “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida
privada”, diz o pobre do artigo 12. E nós dizemos: veja-se o pouco
que vale a assinatura de um presidente da maior democracia do mundo.
Aqui
está. Praticamos sobre os Estados Unidos a infalível prova do
algodão, e eis o que verificamos: não se limitam a estar sujos,
estão sujíssimos.
José Saramago, in O caderno (29/09/2008)
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