sexta-feira, 5 de agosto de 2022

“Tem calma e força, velho”


Foi na terceira volta que viu o peixe.
Viu-o primeiro como uma negra sombra que levou tanto tempo a passar sob o barco, que não pode crer no comprimento.
Não – exclamou. – Não pode ser tão grande.
Mas era assim grande; e, no fim dessa volta, veio à superfície a umas trinta jardas apenas, e o homem viu-lhe a cauda fora de água. Era mais alta do que uma grande foice e cor de alfazema pálida, acima de água azul-escura. Ao passar mesmo abaixo da superfície, o velho via-lhe o imenso bojo e as listras de púrpura que o enfaixavam. A barbatana dorsal estava retraída mas as peitorais, medonhas, abertas de par em par.
Nesta volta, o velho viu o olho do peixe e dois peixes-ventosas, cinzentos, que nadavam à sua volta. Às vezes, agarravam-se a ele. Outras, disparavam para longe. Outras ainda, nadavam serenamente na sombra do grande. Tinham mais de três pés de comprido e ao nadarem depressa, chicoteavam com o corpo todo, como enguias.
O velho suava, mas por outra causa além do sol. Em cada volta calma e plácida que o peixe dava, recuperava linha, e tinha a certeza de que, com mais duas voltas, teria oportunidade de se servir do arpão.
Mas preciso dele bem perto, perto, perto, pensou. Não devo apontar à cabeça. Preciso de acertar no coração”.
Tem calma e força, velho” – disse.
Na volta seguinte, o dorso do peixe estava de fora, mas ainda um pouco afastado do barco. Na outra volta, continuava demasiado afastado, mas mais fora de água, e o velho teve a certeza de que, ganhando mais linha, o conseguiria pôr ao lado do esquife.
Já muito antes preparara o arpão, cuja corda fina estava numa cesta redonda, com a ponta amarrada às abitas da proa.
O peixe aproximava-se na sua volta, calmo e belo à vista, apenas movendo a grande cauda. O velho puxou-o quanto pôde, para o trazer para mais perto. Por um instante, o peixe deitou-se um pouco de lado. Logo se endireitou e principiou outra volta.
Fi-lo mexer! – exclamou o velho. – E é que fiz.
Sentiu-se de novo a desmaiar, mas segurou no grande peixe com quanta força pôde. “Mexi-o, pensou. Talvez que desta vez o apanhe. Puxem, mãos. Aguentem, pernas. Cabeça, não me falhes. Não me falhes. Nunca me falhaste. Desta vez, apanho-o”.
Mas, quando empregou a fundo o seu esforço, começando muito antes de o peixe estar ao pé do barco, aquele voltou-se, endireitou-se, e nadou para longe.
Peixe! – disse o velho. – Peixe! Seja como for, tu vais morrer. Precisas também de me matar?
Assim não se consegue nada”, pensou. A boca, muito seca, não o deixava falar, mas não podia chegar à água. “Já não aguento muitas mais voltas. Sim, aguentas, disse consigo. Aguentas como nunca”.
Na volta seguinte, quase o apanhou. Mas mais uma vez o peixe se endireitou e nadou devagar para longe.
Tu estás a matar-me, peixe, pensou o velho. Mas tens todo o direito. Nunca vi uma coisa maior, ou mais bela, ou mais serena ou mais nobre do que tu, meu irmão. Vem e mata-me. Não quero saber qual de nós mata”.
Agora estás tu a perder a cabeça, pensou. E não deves perder a cabeça. Não a percas, e aprende a sofrer como um homem. Ou como um peixe”.
Reanima-te, cabeça – disse numa voz que mal ouvia. –Reanima-te.
Duas vezes mais aconteceu o mesmo.
Não sei”, pensou o velho. Estivera a ponto de sentir-se morrer, de cada vez. “Não sei. Mas torno a tentar”.
Tornou a tentar, e sentiu-se esmorecer, quando voltou o peixe. O peixe endireitou-se, e afastou-se outra vez, lentamente, com a grande cauda balouçando no ar.
Torno a tentar”, prometeu o velho a si próprio, embora nem sentisse as mãos e apenas visse por lampejos.
Tentou de novo, e foi o mesmo. “Pois é”, pensou, e sentia-se desfalecer, antes de principiar; “hei-de tornar a tentar”.
Convocou toda a sua dor, quanto lhe restava de forças, e o seu orgulho perdido, e tudo lançou contra a agonia do peixe, e o peixe veio rente à borda e nadou mansamente junto à borda, com o nariz quase roçando o costado do barco, e começou a passar-lhe por baixo, longo, fundo, largo, prateado, listrado de púrpura, interminável nas águas.
O velho largou a linha, calcou-a com o pé, levantou o arpão ao alto e fê-lo descer, com toda a força que tinha e mais força que no momento invocou, pelo flanco do peixe adentro, mesmo por trás da grande barbatana peitoral que alta se erguia no ar à altura do peito do homem. Sentiu o ferro entrar e debruçou-se sobre ele e fê-lo entrar mais e carregou depois com o seu peso em cima.
O peixe então reanimou-se, com a morte em si, e saltou bem fora de água, patenteando o seu grande comprimento, a sua envergadura, o seu poder inteiro, a sua beleza. Parecia pairar no ar, acima do velho no esquife. Depois, caiu na água com estrépito, lançando espuma ao velho e por todo o barco.
O velho sentiu-se a desmaiar, agoniado, não via claro. Mas desembaraçou a linha do arpão, e deixou-a correr devagar nas mãos esfoladas e, quando pôde voltar a ver, o peixe estava de costas, com a barriga prateada para cima. O cabo do arpão erguia-se, numa certa inclinação, do flanco do peixe, e o mar mudava de cor com o vermelho do sangue do seu coração.
Primeiro era escuro como um cardume na água azul e funda de mais de uma milha. Depois, espalhou-se como uma nuvem. O peixe, estava prateado, quieto, flutuando ao sabor das ondas.
O velho olhou atentamente, no relance de visão que teve.
Passou então duas voltas da linha do arpão nas abitas da proa, e pousou a cabeça nas mãos.
Não me deixes perder a cabeça – disse contra a madeira da proa. – Sou um velho exausto. Mas matei este peixe que é meu irmão, e tenho agora de fazer o trabalho vil.
Devo tratar agora dos laços e do cabo para o amarrar ao barco, pensou. Mesmo que fôssemos dois e o inundássemos para embarcar o peixe, este esquife não o aguentaria. Tenho de preparar tudo, depois alá-lo, espiá-lo bem, pôr o mastro e largar a vela rumo a casa”.
Começou a puxar o peixe para o ter junto do esquife e poder passar-lhe uma linha às guelras e a sair pela boca e amarrar assim a cabeça à proa. “Quero vê-lo, pensou, tocá-lo, senti-lo. É a minha fortuna. Mas não é por isso que quero apalpá-lo. Creio que lhe senti o coração. Quando empurrei o arpão pela segunda vez. Trá-lo para cá e prende-o bem e passa-lhe um nó corredio à cauda e outro pelo meio para o amarrar ao esquife”.
Toca a trabalhar, velhote – disse. Bebeu um muito pequeno gole de água. – Agora que a luta acabou, há trabalho de sobra.
Ergueu o olhar para o céu, e lançou-o depois ao seu peixe.
Observou o sol cuidadosamente. “Não é muito mais de meio-dia, pensou. E o vento está a levantar-se. As linhas não interessam nada agora. O rapaz e eu as emendaremos em casa”.
Anda, peixe. Mas o peixe não veio. Balanceava-se nas águas, e o velho puxou o esquife até ele.
Quando ficaram lado a lado, com a cabeça do peixe encostada à proa, não queria crer no tamanho dele. Desamarrou, porém, das abitas o cabo do arpão, passou-o pelas guelras, fê-lo sair pelas maxilas, deu uma volta pela lança, meteu-o pelas outras guelras, deu outra volta pelo dardo, fez um nó do duplo cabo e prendeu-o às abitas da proa. Cortou então o cabo, e foi à popa para espiar a cauda. O peixe, de púrpura e prata, passara a prateado só, e as listras tinham a cor violeta clara da cauda. Eram mais largas que uma mão de homem com os dedos abertos, e o olho do peixe destacava-se tanto como os espelhos de um periscópio ou um santo numa procissão.
Era a única maneira de o matar – disse o velho. Desde que bebera a água, estava a sentir-se melhor e certo de que não se iria abaixo, nem a cabeça se esvairia. – Tem mais de setecentos quilos, assim como é. Talvez muito mais. Se dá dois terços limpos, a sessenta cêntimos o quilo?...
Precisava de um lápis. A cabeça não me chega a tanto. Mas acho que o grande DiMaggio se orgulharia hoje de mim. Eu não tinha “esporas de osso”. Mas as mãos e as costas doem de verdade. – Que será uma “espora de osso”?, pensou.
Talvez seja coisa de ter-se sem se saber.
Amarrou o peixe à proa, à popa e a meia-nau. Era tão grande que era quase como ter ao lado um barco muito maior. Cortou um pedaço de linha e prendeu a queixada inferior do peixe à lança, para que a boca se não abrisse, e navegassem o melhor possível. Enfiou depois o mastro e, com o pau que era a sua carangueja e o botaló bem espiado, a vela remendada desfraldou-se, o barco começou a mover-se e, com a borda na água à popa, foi de rumo a sudoeste.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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