segunda-feira, 25 de julho de 2022

Sina

Era um sujeito grandalhão, desajeitado e com um nome desses que, embora simples, ninguém decora. Vinha de Campos pra uma casa de cômodos no Estácio. Temia o Estácio e as histórias de malandragem. Mais do que tudo tinha medo que descobrissem sua falta de assunto, seu permanente mal-estar diante das pessoas, seus gestos descontrolados que derrubavam jarros, derramavam copos, atingiam crianças. Passava pelas rodas reunidas na porta dos butecos com uma certeza massacrante da própria inferioridade. Pra ele, aqueles homens de cigarro no canto da boca sem se queimar, de programa de corrida de cavalos nas mãos ágeis, dedos sujos de giz de sinuca, bigodes cuidadosamente aparados, de olhares ávidos e experientes pra bunda das mulheres – aqueles homens eram heróis. Sentia diante deles a mesma timidez, o mesmo constrangimento, a mesma dor indecifrável que experimentara em sua cidade natal, ao ouvir as histórias do Seu Rocha, o ex-pracinha.
Nos butecos do Estácio todos eram, com certeza, ex-pracinhas. Só ele ainda não havia lutado sua grande guerra, só ele não tinha nada pra contar sobre as batalhas, só ele não havia feito as quase eternas camaradagens.
Muito pior do que se achar um merda, podem crer, era o terror do apelido. Porque aqueles caras espertos, cheios de chinfra, mais cedo ou mais tarde iam botar nele um apelido devastador, asfixiante, mortal.
Seu pânico o aproximou mais é mais dos recantos escuros dos bares vazios, onde bebericava uma cerveja, à espreita de alguma sacanagem, ouvidos atentos às evasivas de duplo sentido, torturado pelos risos às suas costas.
Um dia, na sexta cerva, ouviu uma frase sobre futebol:
Valter Marciano foi dos nossos primeiros jogadores a brilhar na Itália.
Mancada é sempre comovente, ainda mais se o sujeito é vascaíno. Surpreso com a própria coragem, corrigiu o baixinho que chutara pra fora:
Válter Marciano foi, de fato, um ídolo. Só que na Espanha. Morreu lá, num acidente de automóvel.
Foi olhado com espanto. Um mulato de óculos escuros disse que tava certo e perguntou se ele lembrava a linha de 56.
Sabará, Livinho, Vavá, Válter e Pinga numa das últimas partidas, se não me engano. Sabará foi substituído por Lierte, com i. Não confundir com Laerte, que jogava no meio e era, por sua vez, substituído por Écio. Se não me engano.
Recebeu as homenagens a que boa memória tem direito: tira um queijinho, essa eu pago, também aprecia um rabo empinado?
Acabou convidado pra uma seresta, armação do grande Paulo Amarelo.
Foi pra casa, tomou banho, botou a roupa da missa. Não podia acreditar. O Amarelo era um mito. Amigo do Amadeu, Tião da Garagem, Ceceu Rico, Hélio Barbeiro, Beijo Louco...
Tentou ficar atrás de uma goiabeira no quintal do pagode, mas foi saudado com grandes berros de “chega pra cá e junta-te aos bons”. Quase chorou. Os primeiros copos deram uma força. Acabou cantando aquela, “Dentro d’alma dolorida trago um riso teu. A moça de olhos claros deixou cair o lenço. Um coroa resmungou: “Esse grandão é dos meus”.
A noite era uma criança e ele reinava. O baixinho do buteco pediu:
Conta aquela defesa do Barbosa !
A catástrofe. Em plena ponte dos grandes braços pro canto esquerdo da meta, o safanão na gaiola do curió. O passarinho morto. A consternação do dono da casa.
Amadeu tacou-lhe um generoso cacete nas costas:
Fica assim não. Isso acontece. Aí, minha gente, tristezas não pagam dívidas! Passemos à próxima atração! A seguir, ouviremos “Chão de Estrelas” na voz do nosso Arrasa-Curió.
O apelido. Para sempre.

Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

Nenhum comentário:

Postar um comentário