segunda-feira, 25 de julho de 2022

Island Books


[...]
Há apenas uma compilação de contos na lista de Amelia, um estreante. Não leu inteira, e o tempo dita que provavelmente não lerá, mas gostou da primeira história. Uma classe da sexta série nos Estados Unidos e outra na Índia participam de um programa internacional de correspondência. O narrador é um menino indiano na classe americana que passa informações erradas e engraçadas sobre a cultura indiana para os colegas americanos. Ela tosse para limpar a garganta, que ainda está terrivelmente seca. “O ano em que Bombaim virou Mumbai. Acho que vai ser especialmente int…”
Não.”
Eu nem contei do que se trata.”
Disse que não.”
Mas por quê?”
Você sabe que só está me contando desse livro porque sou descendente de indianos e pensa que vai ser especialmente interessante pra mim. Não é?”
Amelia se imagina pegando o computador arcaico e jogando na cabeça dele. “Estou lhe contando porque falou que gosta de contos! E é o único de contos na minha lista. E só pra você saber”, agora ela mente, “é maravilhoso, do começo ao fim. Mesmo sendo um autor estreante.
E quer saber o que mais? Eu amo estreantes. Amo descobrir algo novo. É em parte por isso que tenho esse emprego.” Amelia fica de pé. Sua cabeça lateja. Será que anda bebendo demais? Sua cabeça lateja e seu coração palpita. “Quer minha opinião?”
Na verdade, não. Quantos anos você tem? Vinte e cinco?”
Sr. Fikry, esta loja é uma graça, mas se continuar com esse, esse, esse”, quando criança, gaguejava, e isso de vez em quando volta quando está transtornada; tosse outra vez, “esse jeito atrasado de pensar, logo não haverá mais Island Books.”
Amelia deixa o Desabrochar tardio e o catálogo sobre a mesa. Tropeça nos livros do corredor ao ir embora.
A balsa seguinte só sai dali a uma hora, então ela aproveita pra ir a pé pela cidade. Uma placa de bronze do lado de fora do Bank of America comemora o verão que Herman Melville passou ali, na época em que o edifício era o Alice Inn. Pega o celular e tira uma foto de si com a placa. Alice é legal, mas não acha que vai ter motivo pra voltar logo.
Manda uma mensagem para o chefe, em Nova York: Acho que não vamos ter pedidos da Island. :-(
O chefe responde: Não esquenta. Uma continha de nada, e a Island costuma pedir logo antes do verão, quando os turistas chegam. O dono da loja é esquisitão, e o Harvey costumava ter mais sorte com a lista de primavera/verão. Você vai ter também.
Às seis, A.J. fala pra Molly Klock ir embora. “Está gostando da Munro?”, pergunta.
Ela bufa. “Por que tá todo mundo me perguntando isso hoje?” Só a Amelia tinha perguntado, mas Molly gosta de exagerar.
Acho que é porque você está lendo.”
Molly bufa outra vez. “Tá o.k. As pessoas são, sei lá, humanas demais às vezes.”
Acho que essa é a intenção da Munro”, ele diz.
Sei lá. Prefiro os clássicos. Até segunda.”
Algo tem que ser feito a respeito de Molly, pensa A.J. ao girar a placa para o lado FECHADO. Apesar de gostar de ler, Molly é uma péssima vendedora de livros. Mas ela trabalha só meio período, e é tão chato treinar uma pessoa nova, e pelo menos ela não rouba. Nic tinha contratado a garota, então devia ter visto algo na rabugenta srta. Klock. Talvez no verão A.J. tenha energia para despedi-la.
A.J. expulsa os últimos clientes (está irritado com um grupo que estuda química orgânica e não comprou nada, mas ficou acampado desde as quatro na seção de revistas — tem certeza de que um deles entupiu a privada também), e depois lida com as notas fiscais, uma tarefa tão deprimente quanto parece. Por fim, sobe as escadas para o apartamento na sobreloja, onde mora. Pega uma embalagem de curry congelado e coloca no micro-ondas. Nove minutos, de acordo com as instruções. Parado ali, pensa na garota da Pterodactyl. Parecia uma viajante no tempo, direto de Seattle dos anos 90, com suas galochas de estampa de âncora e o vestido floral de brechó e o suéter bege esfiapado e o cabelo na altura dos ombros que parecia ter sido cortado na cozinha pelo namorado. Namorada? Namorado, decide. Pensa na Courtney Love, na época em que casou com o Kurt Cobain. A boca rosa durona diz Ninguém é capaz de me machucar, mas os olhos azuis suaves dizem Sim, você é capaz e provavelmente me machucará. E ele fez aquela flor de menina enorme chorar. Parabéns, A.J.
O cheiro do curry fica mais forte, mas ainda faltam sete minutos e meio.
Ele precisa de uma tarefa. Algo físico, mas não cansativo.
Ele vai até o porão para desmontar caixas com seu estilete. Corta. Achata. Empilha. Corta. Achata. Empilha.
A.J. se arrepende de seu comportamento com a representante. Não foi culpa dela. Alguém devia ter avisado a ele que Harvey Rhodes tinha morrido.
Corta. Achata. Empilha.
Alguém provavelmente tinha avisado. A.J. apenas olha e-mails por cima, nunca atende ao telefone. Será que houve funeral? Não que A.J. teria ido de qualquer maneira. Ele mal conhecia Harvey Rhodes. Obviamente.
Corta. Achata. Empilha.
No entanto… Tinha passado horas com o homem nos últimos seis anos. Só conversaram sobre livros, mas o que, nessa vida, é mais íntimo do que livros?
Corta. Achata. Empilha.
E como é raro achar alguém com seus gostos! A única briga que tiveram foi a respeito de David Foster Wallace. Na época do suicídio do Wallace. A.J. detestou o tom reverente dos tributos. O homem tinha escrito um livro razoável (apesar de indulgente e grande demais), alguns artigos modestamente perspicazes e não muito mais.
Infinite Jest é uma obra de arte”, dissera Harvey.
Infinite Jest é um teste de resistência. Se der conta de chegar ao fim, não tem escolha a não ser dizer que gostou. Se não, tem que lidar com o fato de que desperdiçou semanas da sua vida”, retrucara A.J. “Estilo sem substância, meu amigo.”
O rosto de Harvey ficara vermelho ao se debruçar sobre a mesa. “Você fala isso de todo escritor que nasceu na mesma década que você!”
Corta. Achata. Empilha.
Quando ele sobe, o curry já esfriou. Esquenta de novo na bandeja de plástico, provavelmente vai ter câncer.
Leva a bandeja para a mesa. A primeira garfada queima. A segunda está congelada. Comida pronta de supermercado. Ele joga a bandeja na parede. Quão pouco ele tinha significado para Harvey e quanto Harvey tinha significado para ele.
A desvantagem de morar sozinho é que, qualquer bagunça que faça, você mesmo tem que limpar.
Não, a verdadeira desvantagem de morar sozinho é que ninguém se importa se está chateado. Ninguém se importa por que um homem de trinta e nove anos jogou uma bandeja de plástico com curry do outro lado do cômodo, como uma criança. Ele se serve de uma taça de vinho. Abre a toalha sobre a mesa. Vai até a sala. Abre a redoma de vidro com controle de temperatura e retira Tamerlane. De volta à cozinha, ele o coloca na mesa, à sua frente, apoiado contra a cadeira onde Nic costumava sentar.
Saúde, sua bela bosta”, ele fala para o fino volume.
Ele termina a taça. Serve-se de outra e, depois que termina essa, promete a si mesmo que irá ler um livro. Talvez um velho querido como Velha escola, de Tobias Wolff, embora seu tempo certamente seria mais bem gasto com algo novo. Sobre qual aquela representante bobinha não parava de falar? Desabrochar tardio… Argh. Ele tinha falado sério. Não há nada pior que memórias fofinhas de viúvos. Ainda mais quando se é um viúvo, como A.J., havia vinte e um meses. A representante era nova — não era sua culpa que não soubesse de sua entediante tragédia pessoal. Nossa, ele sentia saudade da Nic. De sua voz e seu pescoço e até de suas axilas. Ásperas como língua de gato, e no fim do dia, cheirava a leite pouco antes de talhar.
Três taças depois, desmaia na mesa. Tem apenas um metro e setenta e sessenta e cinco quilos, e nem tinha forrado o estômago com o curry. Não vai avançar na sua pilha de leitura esta noite.
Ajay”, Nic sussurra. “Vai pra cama.”
Ao menos, ele sonha. O objetivo de toda bebedeira é chegar a este estado.
Nic, sua esposa fantasma de sonho bêbado, o ajuda a ficar de pé.
Você é uma desgraça, seu nerd. Sabia disso?”
Ele faz que sim.
Curry congelado e vinho tinto de cinco dólares.”
Estou seguindo as tradições de minha ascendência.”
Ele e o fantasma arrastam os pés para a cama.
Parabéns, sr. Fikry. Está se tornando um alcoólatra de carteirinha.”
Desculpa”, ele diz, e ela o coloca na cama.
Seu cabelo castanho está curto, “Cortou o cabelo, meio moleca”, ele diz. “Que estranho.”
Você foi horrível com aquela menina hoje.”
Foi por causa do Harvey.”
Óbvio.”
Não gosto quando as pessoas que eu conheço morrem.”
É por isso que não manda a Molly Klock embora?”
Ele assente.
Não pode continuar assim.”
Posso”, diz A.J. “Estou. E vou.”
Ela o beija na testa. “O quero dizer é que eu gostaria que não continuasse.”
Ela vai embora.
O acidente não tinha sido culpa de ninguém. Ela tinha levado um autor para casa após um evento durante a tarde. Provavelmente corria para pegar a última balsa de automóveis para Alice. Possivelmente tinha desviado para não atropelar um veado.
Possivelmente foram as estradas de Massachusetts no inverno. Não havia como saber. O policial no hospital perguntou se ela tinha tendências suicidas. “Não”, respondeu A.J. “De jeito nenhum.” Ela estava grávida de dois meses. Ainda não tinham contado a ninguém. Já tinham se frustrado antes. Na sala de espera do necrotério, ele desejou ter contado. Ao menos teriam tido um breve período de felicidade antes… Ainda não sabia como chamar isso. “Não, não tinha tendências suicidas.” Fez uma pausa. “Era uma péssima motorista que achava que dirigia bem.”
Sim”, disse o policial. “Não foi culpa de ninguém.”
As pessoas gostam de falar isso”, retrucou A.J. “Mas foi culpa de alguém. Dela. Que coisa idiota ela foi fazer. Que coisa idiota e melodramática ela foi fazer. Que jogada de Danielle Steel, Nic! Se fosse um romance, eu pararia de ler agora. Eu jogaria o livro do outro lado da sala.”
O policial (que não lia muito, a não ser o popular Jeffery Deaver durante as férias) tentou direcionar a conversa de volta à realidade. “É verdade. Você é o dono da livraria.”
Minha esposa e eu somos”, A.J. corrigiu sem pensar. “Nossa, acabei de fazer aquela coisa idiota, quando o personagem esquece que a esposa morreu e usa ‘nós’ sem querer. Que clichê. Senhor”, parou para ler o distintivo do policial, “Lambiase, você e eu somos dois personagens de um romance ruim. Sabia disso? Como é que viemos parar aqui, pô? Você deve estar pensando, Pobre coitado, e hoje à noite vai abraçar seus filhos mais apertado porque é isso que personagens nesse tipo de romance fazem. Sabe de que tipo de livro estou falando, não sabe? O tipo de ficção literária que faz sucesso que, tipo, segue um personagem coadjuvante sem importância por um tempo pra parecer coisa do Faulkner, efusivo. Olha como o autor gosta das pessoas comuns! Até seu nome. Policial Lambiase é o nome perfeito para um tira clichê de Massachusetts. Você é racista, Lambiase? Porque o seu tipo de personagem tem que ser racista.”
Sr. Fikry”, o policial Lambiase dissera, “tem alguém para quem possa telefonar?” Ele era um bom policial, acostumado às diversas maneiras como os que perdem um ente querido podem ter um colapso. Pousou a mão sobre o ombro de A.J.
Sim! Isso mesmo, policial Lambiase, é exatamente o que deve fazer neste momento! Está atuando perfeitamente. Por acaso você sabe o que o viúvo deve fazer agora?”
Ligar para alguém”, respondeu Lambiase.
Sim, deve ser isso mesmo. Mas já liguei para os meus sogros.” A.J. assentiu. “Se fosse um conto, nossa conversa acabava aqui. Um pequeno desvio irônico. Por isso, não há nada mais elegante na prosa que um conto, sr. Lambiase.
Se fosse Raymond Carver, você me ofereceria pouco conforto e a escuridão baixaria e tudo isso teria fim. Mas isso… isso está me parecendo mais um romance. Emocionalmente, quero dizer. Vou demorar um pouco para chegar ao fim. Sabe?”
Não sei, não. Nunca li Raymond Carver”, disse o policial Lambiase. “Eu gosto de Lincoln Rhyme. Conhece?”
O criminologista tetraplégico. Escreve bem para o nicho. Já leu contos?!”
Talvez na escola. Contos de fadas. Ou, hum, O menino e o alazão? Eu acho que devo ter lido O menino e o alazão.”
Esse é uma novela.”
Ah, desculpa. Eu… Espera, tem um com um policial que me lembro de ter lido no colegial. Uma coisa de crime perfeito, acho que é por isso que lembro. Um policial é morto pela esposa. A arma é uma carne congelada, e ela serve pro outro…”
“‘Cordeiro ao matadouro’”, disse A.J. “O conto se chama ‘Cordeiro ao matadouro’ e a arma é um pernil de cordeiro.”
Sim, é esse!” O policial ficou felicíssimo. “Você entende do assunto.”
É um texto muito conhecido. Meus sogros devem estar pra chegar. Desculpa ter me referido a você como ‘personagem coadjuvante sem importância’. Fui rude, e, até onde a gente sabe, eu sou ‘personagem coadjuvante sem importância’ na grande saga do Policial Lambiase. Um tira é um protagonista mais provável que um livreiro. Você, meu caro, tem seu próprio nicho.”
Hum”, disse Lambiase, “você deve ter razão. Voltando ao assunto. Como policial, meu problema é a sequência de eventos. Tipo, ela coloca a carne…”
Cordeiro.”
Cordeiro. Então ela mata o cara com um pedaço de cordeiro congelado depois coloca o negócio no forno sem nem descongelar. Não sou nenhum chef de cozinha, mas…”
Nic já tinha começado a congelar quando retiraram o carro da água, e no necrotério seus lábios estavam azuis. A cor lembrou a A.J. do batom preto que ela tinha usado no lançamento do último livro qualquer sobre vampiros. Ele não gostou nada da ideia de adolescentes tontinhas pulando pela Island com seus vestidos de formatura, mas Nic, que tinha gostado daquele maldito livro de vampiro, e a mulher que o escreveu insistiram que a formatura de vampiros seria boa para os negócios e também divertida. “Você lembra o que é diversão, né?”
Vagamente”, ele dissera. “Faz muito tempo, antes de me tornar livreiro, quando eu tinha fins de semana e noites solitários, no tempo em que eu lia por prazer, lembro que havia diversão. Tão, tão vagamente. Sim!”
Me deixe refrescar sua memória. Diversão é ter uma esposa inteligente, bonita e tranquila com quem você passa todos os dias trabalhando.”
Ele ainda conseguia vê-la naquele vestido absurdo de cetim preto, o braço direito abraçado à coluna da varanda e seus graciosos lábios pintados em linha reta. “Tragicamente, minha esposa virou uma vampira.”
Pobrezinho.” Cruzou a varanda e o beijou, deixando a marca de batom como uma contusão. “A única coisa que lhe resta fazer é se tornar um vampiro também. Não tente resistir. É a pior coisa. Você tem que ser descolado, nerd. Me convide para entrar.”

Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry

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