[...]
Há
apenas uma compilação de contos na lista de Amelia, um estreante.
Não leu inteira, e o tempo dita que provavelmente não lerá, mas
gostou da primeira história. Uma classe da sexta série nos Estados
Unidos e outra na Índia participam de um programa internacional de
correspondência. O narrador é um menino indiano na classe americana
que passa informações erradas e engraçadas sobre a cultura indiana
para os colegas americanos. Ela tosse para limpar a garganta, que
ainda está terrivelmente seca. “O ano em que Bombaim virou
Mumbai. Acho que vai ser especialmente int…”
“Não.”
“Eu
nem contei do que se trata.”
“Disse
que não.”
“Mas
por quê?”
“Você
sabe que só está me contando desse livro porque sou descendente de
indianos e pensa que vai ser especialmente interessante pra mim. Não
é?”
Amelia
se imagina pegando o computador arcaico e jogando na cabeça dele.
“Estou lhe contando porque falou que gosta de contos! E é o único
de contos na minha lista. E só pra você saber”, agora ela mente,
“é maravilhoso, do começo ao fim. Mesmo sendo um autor estreante.
“E
quer saber o que mais? Eu amo estreantes. Amo descobrir algo novo. É
em parte por isso que tenho esse emprego.” Amelia fica de pé. Sua
cabeça lateja. Será que anda bebendo demais? Sua cabeça lateja e
seu coração palpita. “Quer minha opinião?”
“Na
verdade, não. Quantos anos você tem? Vinte e cinco?”
“Sr.
Fikry, esta loja é uma graça, mas se continuar com esse, esse,
esse”, quando criança, gaguejava, e isso de vez em quando volta
quando está transtornada; tosse outra vez, “esse jeito atrasado de
pensar, logo não haverá mais Island Books.”
Amelia
deixa o Desabrochar tardio e o catálogo sobre a mesa. Tropeça
nos livros do corredor ao ir embora.
A
balsa seguinte só sai dali a uma hora, então ela aproveita pra ir a
pé pela cidade. Uma placa de bronze do lado de fora do Bank of
America comemora o verão que Herman Melville passou ali, na época
em que o edifício era o Alice Inn. Pega o celular e tira uma foto de
si com a placa. Alice é legal, mas não acha que vai ter motivo pra
voltar logo.
Manda
uma mensagem para o chefe, em Nova York: Acho que não vamos ter
pedidos da Island. :-(
O
chefe responde: Não esquenta. Uma continha de nada, e a Island
costuma pedir logo antes do verão, quando os turistas chegam. O dono
da loja é esquisitão, e o Harvey costumava ter mais sorte com a
lista de primavera/verão. Você vai ter também.
Às
seis, A.J. fala pra Molly Klock ir embora. “Está gostando da
Munro?”, pergunta.
Ela
bufa. “Por que tá todo mundo me perguntando isso hoje?” Só a
Amelia tinha perguntado, mas Molly gosta de exagerar.
“Acho
que é porque você está lendo.”
Molly
bufa outra vez. “Tá o.k. As pessoas são, sei lá, humanas demais
às vezes.”
“Acho
que essa é a intenção da Munro”, ele diz.
“Sei
lá. Prefiro os clássicos. Até segunda.”
Algo
tem que ser feito a respeito de Molly, pensa A.J. ao girar a placa
para o lado FECHADO. Apesar de gostar de ler, Molly é uma péssima
vendedora de livros. Mas ela trabalha só meio período, e é tão
chato treinar uma pessoa nova, e pelo menos ela não rouba. Nic tinha
contratado a garota, então devia ter visto algo na rabugenta srta.
Klock. Talvez no verão A.J. tenha energia para despedi-la.
A.J.
expulsa os últimos clientes (está irritado com um grupo que estuda
química orgânica e não comprou nada, mas ficou acampado desde as
quatro na seção de revistas — tem certeza de que um deles entupiu
a privada também), e depois lida com as notas fiscais, uma tarefa
tão deprimente quanto parece. Por fim, sobe as escadas para o
apartamento na sobreloja, onde mora. Pega uma embalagem de curry
congelado e coloca no micro-ondas. Nove minutos, de acordo com as
instruções. Parado ali, pensa na garota da Pterodactyl. Parecia uma
viajante no tempo, direto de Seattle dos anos 90, com suas galochas
de estampa de âncora e o vestido floral de brechó e o suéter bege
esfiapado e o cabelo na altura dos ombros que parecia ter sido
cortado na cozinha pelo namorado. Namorada? Namorado, decide. Pensa
na Courtney Love, na época em que casou com o Kurt Cobain. A boca
rosa durona diz Ninguém é capaz de me machucar, mas os olhos
azuis suaves dizem Sim, você é capaz e provavelmente me
machucará. E ele fez aquela flor de menina enorme chorar.
Parabéns, A.J.
O
cheiro do curry fica mais forte, mas ainda faltam sete minutos
e meio.
Ele
precisa de uma tarefa. Algo físico, mas não cansativo.
Ele
vai até o porão para desmontar caixas com seu estilete. Corta.
Achata. Empilha. Corta. Achata. Empilha.
A.J.
se arrepende de seu comportamento com a representante. Não foi culpa
dela. Alguém devia ter avisado a ele que Harvey Rhodes tinha
morrido.
Corta.
Achata. Empilha.
Alguém
provavelmente tinha avisado. A.J. apenas olha e-mails por cima, nunca
atende ao telefone. Será que houve funeral? Não que A.J. teria ido
de qualquer maneira. Ele mal conhecia Harvey Rhodes. Obviamente.
Corta.
Achata. Empilha.
No
entanto… Tinha passado horas com o homem nos últimos seis anos. Só
conversaram sobre livros, mas o que, nessa vida, é mais íntimo do
que livros?
Corta.
Achata. Empilha.
E
como é raro achar alguém com seus gostos! A única briga que
tiveram foi a respeito de David Foster Wallace. Na época do suicídio
do Wallace. A.J. detestou o tom reverente dos tributos. O homem tinha
escrito um livro razoável (apesar de indulgente e grande demais),
alguns artigos modestamente perspicazes e não muito mais.
“Infinite
Jest é uma obra de arte”, dissera Harvey.
“Infinite
Jest é um teste de resistência. Se der conta de chegar ao fim,
não tem escolha a não ser dizer que gostou. Se não, tem que lidar
com o fato de que desperdiçou semanas da sua vida”, retrucara A.J.
“Estilo sem substância, meu amigo.”
O
rosto de Harvey ficara vermelho ao se debruçar sobre a mesa. “Você
fala isso de todo escritor que nasceu na mesma década que você!”
Corta.
Achata. Empilha.
Quando
ele sobe, o curry já esfriou. Esquenta de novo na bandeja de
plástico, provavelmente vai ter câncer.
Leva
a bandeja para a mesa. A primeira garfada queima. A segunda está
congelada. Comida pronta de supermercado. Ele joga a bandeja na
parede. Quão pouco ele tinha significado para Harvey e quanto Harvey
tinha significado para ele.
A
desvantagem de morar sozinho é que, qualquer bagunça que faça,
você mesmo tem que limpar.
Não,
a verdadeira desvantagem de morar sozinho é que ninguém se importa
se está chateado. Ninguém se importa por que um homem de trinta e
nove anos jogou uma bandeja de plástico com curry do outro lado do
cômodo, como uma criança. Ele se serve de uma taça de vinho. Abre
a toalha sobre a mesa. Vai até a sala. Abre a redoma de vidro com
controle de temperatura e retira Tamerlane. De volta à
cozinha, ele o coloca na mesa, à sua frente, apoiado contra a
cadeira onde Nic costumava sentar.
“Saúde,
sua bela bosta”, ele fala para o fino volume.
Ele
termina a taça. Serve-se de outra e, depois que termina essa,
promete a si mesmo que irá ler um livro. Talvez um velho querido
como Velha escola, de Tobias Wolff, embora seu tempo
certamente seria mais bem gasto com algo novo. Sobre qual aquela
representante bobinha não parava de falar? Desabrochar tardio…
Argh. Ele tinha falado sério. Não há nada pior que memórias
fofinhas de viúvos. Ainda mais quando se é um viúvo, como A.J.,
havia vinte e um meses. A representante era nova — não era sua
culpa que não soubesse de sua entediante tragédia pessoal. Nossa,
ele sentia saudade da Nic. De sua voz e seu pescoço e até de suas
axilas. Ásperas como língua de gato, e no fim do dia, cheirava a
leite pouco antes de talhar.
Três
taças depois, desmaia na mesa. Tem apenas um metro e setenta e
sessenta e cinco quilos, e nem tinha forrado o estômago com o curry.
Não vai avançar na sua pilha de leitura esta noite.
“Ajay”,
Nic sussurra. “Vai pra cama.”
Ao
menos, ele sonha. O objetivo de toda bebedeira é chegar a este
estado.
Nic,
sua esposa fantasma de sonho bêbado, o ajuda a ficar de pé.
“Você
é uma desgraça, seu nerd. Sabia disso?”
Ele
faz que sim.
“Curry
congelado e vinho tinto de cinco dólares.”
“Estou
seguindo as tradições de minha ascendência.”
Ele
e o fantasma arrastam os pés para a cama.
“Parabéns,
sr. Fikry. Está se tornando um alcoólatra de carteirinha.”
“Desculpa”,
ele diz, e ela o coloca na cama.
Seu
cabelo castanho está curto, “Cortou o cabelo, meio moleca”, ele
diz. “Que estranho.”
“Você
foi horrível com aquela menina hoje.”
“Foi
por causa do Harvey.”
“Óbvio.”
“Não
gosto quando as pessoas que eu conheço morrem.”
“É
por isso que não manda a Molly Klock embora?”
Ele
assente.
“Não
pode continuar assim.”
“Posso”,
diz A.J. “Estou. E vou.”
Ela
o beija na testa. “O quero dizer é que eu gostaria que não
continuasse.”
Ela
vai embora.
O
acidente não tinha sido culpa de ninguém. Ela tinha levado um autor
para casa após um evento durante a tarde. Provavelmente corria para
pegar a última balsa de automóveis para Alice. Possivelmente tinha
desviado para não atropelar um veado.
Possivelmente
foram as estradas de Massachusetts no inverno. Não havia como saber.
O policial no hospital perguntou se ela tinha tendências suicidas.
“Não”, respondeu A.J. “De jeito nenhum.” Ela estava grávida
de dois meses. Ainda não tinham contado a ninguém. Já tinham se
frustrado antes. Na sala de espera do necrotério, ele desejou ter
contado. Ao menos teriam tido um breve período de felicidade antes…
Ainda não sabia como chamar isso. “Não, não tinha tendências
suicidas.” Fez uma pausa. “Era uma péssima motorista que achava
que dirigia bem.”
“Sim”,
disse o policial. “Não foi culpa de ninguém.”
“As
pessoas gostam de falar isso”, retrucou A.J. “Mas foi culpa de
alguém. Dela. Que coisa idiota ela foi fazer. Que coisa idiota e
melodramática ela foi fazer. Que jogada de Danielle Steel, Nic! Se
fosse um romance, eu pararia de ler agora. Eu jogaria o livro do
outro lado da sala.”
O
policial (que não lia muito, a não ser o popular Jeffery Deaver
durante as férias) tentou direcionar a conversa de volta à
realidade. “É verdade. Você é o dono da livraria.”
“Minha
esposa e eu somos”, A.J. corrigiu sem pensar. “Nossa, acabei de
fazer aquela coisa idiota, quando o personagem esquece que a esposa
morreu e usa ‘nós’ sem querer. Que clichê. Senhor”, parou
para ler o distintivo do policial, “Lambiase, você e eu somos dois
personagens de um romance ruim. Sabia disso? Como é que viemos parar
aqui, pô? Você deve estar pensando, Pobre coitado, e hoje à
noite vai abraçar seus filhos mais apertado porque é isso que
personagens nesse tipo de romance fazem. Sabe de que tipo de livro
estou falando, não sabe? O tipo de ficção literária que faz
sucesso que, tipo, segue um personagem coadjuvante sem importância
por um tempo pra parecer coisa do Faulkner, efusivo. Olha como o
autor gosta das pessoas comuns! Até seu nome. Policial Lambiase é o
nome perfeito para um tira clichê de Massachusetts. Você é
racista, Lambiase? Porque o seu tipo de personagem tem que ser
racista.”
“Sr.
Fikry”, o policial Lambiase dissera, “tem alguém para quem possa
telefonar?” Ele era um bom policial, acostumado às diversas
maneiras como os que perdem um ente querido podem ter um colapso.
Pousou a mão sobre o ombro de A.J.
“Sim!
Isso mesmo, policial Lambiase, é exatamente o que deve fazer neste
momento! Está atuando perfeitamente. Por acaso você sabe o que o
viúvo deve fazer agora?”
“Ligar
para alguém”, respondeu Lambiase.
“Sim,
deve ser isso mesmo. Mas já liguei para os meus sogros.” A.J.
assentiu. “Se fosse um conto, nossa conversa acabava aqui. Um
pequeno desvio irônico. Por isso, não há nada mais elegante na
prosa que um conto, sr. Lambiase.
“Se
fosse Raymond Carver, você me ofereceria pouco conforto e a
escuridão baixaria e tudo isso teria fim. Mas isso… isso está me
parecendo mais um romance. Emocionalmente, quero dizer. Vou demorar
um pouco para chegar ao fim. Sabe?”
“Não
sei, não. Nunca li Raymond Carver”, disse o policial Lambiase. “Eu
gosto de Lincoln Rhyme. Conhece?”
“O
criminologista tetraplégico. Escreve bem para o nicho. Já leu
contos?!”
“Talvez
na escola. Contos de fadas. Ou, hum, O menino e o alazão? Eu acho
que devo ter lido O menino e o alazão.”
“Esse
é uma novela.”
“Ah,
desculpa. Eu… Espera, tem um com um policial que me lembro de ter
lido no colegial. Uma coisa de crime perfeito, acho que é por isso
que lembro. Um policial é morto pela esposa. A arma é uma carne
congelada, e ela serve pro outro…”
“‘Cordeiro
ao matadouro’”, disse A.J. “O conto se chama ‘Cordeiro ao
matadouro’ e a arma é um pernil de cordeiro.”
“Sim,
é esse!” O policial ficou felicíssimo. “Você entende do
assunto.”
“É
um texto muito conhecido. Meus sogros devem estar pra chegar.
Desculpa ter me referido a você como ‘personagem coadjuvante sem
importância’. Fui rude, e, até onde a gente sabe, eu sou
‘personagem coadjuvante sem importância’ na grande saga do
Policial Lambiase. Um tira é um protagonista mais provável que um
livreiro. Você, meu caro, tem seu próprio nicho.”
“Hum”,
disse Lambiase, “você deve ter razão. Voltando ao assunto. Como
policial, meu problema é a sequência de eventos. Tipo, ela coloca a
carne…”
“Cordeiro.”
“Cordeiro.
Então ela mata o cara com um pedaço de cordeiro congelado depois
coloca o negócio no forno sem nem descongelar. Não sou nenhum chef
de cozinha, mas…”
Nic
já tinha começado a congelar quando retiraram o carro da água, e
no necrotério seus lábios estavam azuis. A cor lembrou a A.J. do
batom preto que ela tinha usado no lançamento do último livro
qualquer sobre vampiros. Ele não gostou nada da ideia de
adolescentes tontinhas pulando pela Island com seus vestidos de
formatura, mas Nic, que tinha gostado daquele maldito livro de
vampiro, e a mulher que o escreveu insistiram que a formatura de
vampiros seria boa para os negócios e também divertida. “Você
lembra o que é diversão, né?”
“Vagamente”,
ele dissera. “Faz muito tempo, antes de me tornar livreiro, quando
eu tinha fins de semana e noites solitários, no tempo em que eu lia
por prazer, lembro que havia diversão. Tão, tão vagamente. Sim!”
“Me
deixe refrescar sua memória. Diversão é ter uma esposa
inteligente, bonita e tranquila com quem você passa todos os dias
trabalhando.”
Ele
ainda conseguia vê-la naquele vestido absurdo de cetim preto, o
braço direito abraçado à coluna da varanda e seus graciosos lábios
pintados em linha reta. “Tragicamente, minha esposa virou uma
vampira.”
“Pobrezinho.”
Cruzou a varanda e o beijou, deixando a marca de batom como uma
contusão. “A única coisa que lhe resta fazer é se tornar um
vampiro também. Não tente resistir. É a pior coisa. Você tem que
ser descolado, nerd. Me convide para entrar.”
Gabrielle Zevin, in A vida do livreiro A. J. Fikry
Nenhum comentário:
Postar um comentário