segunda-feira, 11 de julho de 2022

Da natureza de um impulso ou entre os números um ou computador eletrônico

Sei que o que eu vou falar é difícil, mas que é que eu vou fazer, se me ocorreu com tanta naturalidade e precisão? É assim:
Não era nada mais que um impulso. Para ser mais precisa, era impulso apenas, e não um impulso. Não se pode dizer que este impulso mantinha a mulher porque manter lembraria um estado e não se poderia falar em estado quando o impulso o que fazia era continuamente levá-la. É claro que, por hábito de chegar, ela fazia com que o impulso a levasse a alguma parte ou a algum ato. O que dava o ligeiríssimo desconforto de uma traição à natureza intransitiva do impulso. No entanto, não se pode nem de longe falar em gratuidade de impulso, apenas por se ter falado de alguma coisa intransitiva. Com o hábito de “comprar e vender”, atos que dão o suspiro de uma conclusão, terminamos pensando que aquilo que não se conclui, o que não se finda, fica em fio solto, fica interrompido. Quando, na verdade, o impulso ia sempre. O que, de novo, pode levar a se querer presumir o problema de distância: ia longe ou perto. E aonde. Quando isso na verdade já cairia no caso em que falamos acima, sobre o ligeiríssimo desconforto que vem de se confundir a aplicação do impulso com o impulso propriamente dito. Não, não se quer dizer que a aplicação do impulso dá mal-estar. Pelo contrário, o impulso não aplicado durante um certo tempo pode se tornar de uma intensidade cujo incômodo só se alivia com uma aplicação factual dele. Depois que a intensidade dele é aliviada, o que nós chamaríamos de resíduo de impulso não é resíduo, é o impulso propriamente dito – é o impulso sem a carga de choro (choro no sentido de acúmulo, acúmulo no sentido de quantidade superposta), é o impulso sem a urgência (urgência no sentido de modificação de ritmo de tempo, e, na verdade, modificação de ritmo é modificação do tempo em si).
Mas, considerando que nós somos um fato, quer dizer, cada um de nós é um fato – ou, pelo menos, como lidar conosco mesmos sem, como andaime necessário, não nos tratarmos como um fato? – como eu ia dizendo, considerando que cada um de nós é um fato, a tendência é transformarmos o que é (existe) em fatos, em transformarmos o impulso em sua aplicação. E fazermos com que o atonal se torne tonal. E darmos um finito ao infinito, numa série de finitos (infinito não é usado aqui como quantidade imensurável, mas como qualidade imanente). O grande desconforto vem de que, por mais longa que seja a série de finitos, ela não esgota a qualidade residual de infinito (que na realidade não é residual, é o próprio infinito). O fato de não esgotar não acarretaria nenhum desconforto se não fosse a confusão entre ser e o uso do ser. O Uso do ser é temporário, mesmo que pareça continuado: é continuado no sentido em que, acabado um uso, segue-se imediatamente outro. Mas a verdade é que seria mais certo dizer: segue-se mediatamente e não imediatamente: até entre o número um e o número um, há, como se pode adivinhar, um um. Esse um, entre os dois uns, só se chamaria de resíduo se quiséssemos chamar arbitrariamente os dois números um mais importantes que o “um entre”. Esse “um entre” é atonal, é impulso.
Como se pode imaginar, a mulher que estava pensando nisso não estava absolutamente pensando propriamente. Estava o que se chama de absorta, de ausente. Tanto que, após um determinado instante em que sua ausência (que era um pensamento profundo, profundo no sentido de não pensável e não dizível), após um determinado instante em que sua ausência fraquejou por um instante, ela sucumbiu ao uso da palavra-pensada (que a transformou em fato), a partir do momento em que ela factualizou-se por um segundo em pensamento – ela se enganchou um instante em si mesma, atrapalhou-se um segundo como um sonâmbulo que esbarra sua liberdade numa cadeira, suspirou um instante, parte involuntariamente para aliviar o que se tornara de algum modo intenso, parte voluntariamente para apressar sua própria metamorfose em fato.
O fato (que a fez suspirar) em que ela se transformou era o de uma mulher com uma vassoura na mão. Uma revolta infinitesimal passou-se nela – não, como se poderá concluir, por ela ser o fato de uma mulher com uma vassoura na mão – mas a infinitesimal revolta, até agradável (pois ar em movimento é brisa) em, de um modo geral, aplicar-se. Aplicar-se era uma canalização, canalização era uma necessária limitação, limitação um necessário desconhecer do que há entre o número um e o número um.
Como se disse, revolta ligeiramente agradável, que se foi intensificando em mais e mais agradável, até que a aplicação de si mesma em si mesma se tornou sumamente agradável – e, com o próprio atonal, ela se tornou o que se chama música, quer dizer, audível. Naturalmente sobrou, como na boca sobre um gosto, a sensação atonal do contato atonal com o impulso atonal.
O que fez a mulher ter uma expressão de olhos que, factualmente, era a de uma vaca. As coisas tendem a tomar a forma do fato que se é (o modo como o que é se torna fato é um modo infinitesimal rápido). Com a vassoura numa das mãos, pois, ela usou a outra mão para ajeitar os cabelos. Acabou de reunir com a vassoura os cacos do copo quebrado – na verdade, o quebrar-se inesperado do copo é o que havia dado artificialmente um finito, e a fizera deslizar para o um entre os dois uns – acabou de reunir os cacos com vivacidade de movimentos. O homem que estava na sala percebeu a vivacidade dos movimentos, não soube entender o que percebera mas, como realmente percebera, disse tentativamente, sabendo que não estava exprimindo sua própria percepção: o chão está limpo agora.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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