quarta-feira, 27 de julho de 2022

Carcará | Um


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Há seis meses passados, tarde da noite, seu sono fora interrompido por batidas secas na janela e, depois, na porta da frente.
Avivou o candeeiro de querosene, logo que se levantou da rede; vestiu as calças largas, enfiando o camisão dentro delas e, já bem desperto, perguntou:
Quem é?
Alguém com a voz abafada, mas audível, esclareceu:
É Laurindo, Anastácio.
A cabeça ficou dando voltas: Laurindo... Laurindo... ah! Era um cabra de Lampião. Aquilo cheirava a encrenca. E se dessem notícia de um cangaceiro entrando em sua casa àquela hora da noite? Devia abrir? Resolveu perguntar:
Que é que o amigo quer?
Laurindo foi incisivo, mas suave:
Sou de paz. Preciso falar com você. É da parte de Sabino, do tenente Sabino Gomes. Conversa ligeira.
Você está só?
Vira, pela fresta da janela, que havia dois vultos, pelo menos. O cabra não mentiu:
Tou eu e Bem-te-vi, companheiro. Gente minha.
Quando abriu a porta, os dois homens entraram com rapidez e o seguraram, tomando o candeeiro que erguera com a mão esquerda. Diante do ar doméstico e da serenidade de Raimundo Anastácio, ficaram sem jeito, largando-o. Laurindo quase se desculpou:
Não é nada, seu Raimundo; o Chefe quer falar com você, hoje. Está esperando. Arrume-se para viajar.
Raimundo, calmo, indagou:
O Chefe? Quem é o Chefe? É o Capitão Virgolino?
Não, homem. O Chefe é o Tenente Sabino, que tem, como o Capitão, patente oficial dada pelo meu Padim Pade Cisso. A gente vai agora e bem cedinho você está de volta.
Onde é que ele está? – perguntou Anastácio.
Você é besta, homem? Porque é que vamos lhe dizer onde o homem está? Deixe de conversa e venha com a gente.
Bem-te-vi, até então calado, mas segurando, por hábito, o cabo longo do punhal, que alisava com o polegar da mão direita, dirigiu-se a Laurindo:
Tá ficando tarde. Já devia estar voltando.
Raimundo tinha receio que a mulher acordasse. A sorte é que Dorinha tinha o um sono de pedra. Se se levantasse, ia fazer uma confusão danada. Para sair da confusão era preciso arriscar. E ponderou, com tranquilidade:
Hoje não pode ser. Amanhã sim.
Por que não agora?
Quero pedir a vocês que falem mais baixo. É que o Cabo Zé Gonçalves, primo e irmão de criação da minha mulher, está dormindo no quarto dos fundos do quintal. Se ele me pegar encilhando o animal a essa hora, vai fazer perguntas. É desconfiado como os seiscentos diabos.
Podemos acabar com ele – alvitrou Bem-te-vi.
Laurindo olhou com ar de espanto para o lado do seu companheiro e não disse nada. Raimundo aproveitou o momento da dúvida e falou, como coisa assentada:
Vocês me esperam, amanhã, na Rodagem, e de lá a gente vai junto. Tenho negócios para as bandas de Alagoinha e Baixio; ninguém vai estranhar mais uma viagem minha. Agora, sair nas barbas de Cabo Zé, que é esperto, me parece arriscado tanto para mim como para vocês.
Laurindo demorou um pouco, mas, afinal, concordou:
Amanhã, não. Depois de amanhã, quinta-feira. Espero você no sítio Remédios. Coisa certa. O Chefe não brinca.
Raimundo Anastácio se fez de distraído:
É o Capitão Virgolino Ferreira?
Não, homem – esclareceu, ríspido, o cangaceiro Laurindo. – O Capitão Virgolino não está nessa. O Chefe do Grupo é o tenente Sabino, entendeu?
Entendi. Pois digam ao Tenente Sabino que quinta-feira vou falar com ele,
Laurindo recomendou:
Essa conversa fica entre nós, ouviu?
Não sou menino. Passei minha vida na vida que vocês estão começando agora.
Depois de amanhã no sítio Remédios.
Certo, Laurindo.
Nem sua mulher precisa saber disso.
Fique descansado. Confie na minha experiência.
Laurindo foi saindo, parou na soleira da porta, ia dizer alguma coisa, mas não disse. O olhar duro de gavião fixou-se nos olhos de Raimundo Anastácio, como se fosse uma espécie de última advertência. Raimundo sabia que estava falando com um homem frio, decidido, acostumado a matar. Apesar de estar vestido como um matuto, não disfarçava, de forma nenhuma, os gestos medidos e cautelosos do caçador. Ouviu, distintamente, ainda na calçada de sua casa, Bem-te-vi, o cangaceiro mais novo, dizer ao outro:
Não confio nesse sujeito. Ou ele é muito esperto, ou já está meio besta. Foi preciso você dizer duas vezes que o Chefe era Sabino e não o Capitão. Sei não...
Como ia sair dessa? Estava em papos de aranha. O perigo imediato era os bandidos descobrirem sua mentira sobre o Cabo Zé Gonçalves, que não dormia no fundo do quintal e só era parente de sua mulher por parte de Adão. Fechou a porta com um suspiro de alívio. Entrou no quarto onde a mulher dormia, apanhou o rifle 44, papo amarelo, e ficou na porta da cozinha à espera. Passou, ali, até ouvir, lá pelas cinco horas da madrugada, os galos começarem a cantar, desanimadamente.
Pensou em contar a visita ao Delegado de então, Sargento Inaldo Pedrosa, mas não o fez: ia aumentar a desconfiança da cidade contra a sua pessoa e comprar, para toda a vida, o ódio de Sabino. Decisão que lhe parecera menos ruim: não ir ao encontro marcado com Sabino e não falar no assunto com ninguém.

Os cangaceiros continuaram de forma intermitente, realizando pequenos assaltos nas fazendas e povoações. O Sargento Pedrosa, vermelho e atrabiliário, fora substituído pelo Tenente Elino Fernando. Ouvira dizer que era um homem educado e calmo. Boas qualidades para um oficial residente na Capital; no sertão brabo, o posto reclamava o contrário: um homem duro, valente, com experiência de luta.
Quanto a ele, Raimundo Anastácio, a posição era inalterada, pois era objeto de desconfiança de algumas pessoas da cidade e, ainda, mal visto pelos bandoleiros...
Romeu Menandro Cruz, seu amigo, foi quem lhe falou, primeiro, sobre o novo Delegado, cobrindo-o de elogios. Um dia, levou-o à presença do Tenente Elino. Conversaram bastante, falando Raimundo do tempo em que estivera no cangaço. Aproveitou para queixar-se de ter sido durante muito tempo bode expiatório de tudo o que era autoridade policial que passava pela cidade. O Tenente repetiu a pergunta:
Você conheceu Lampião?
Sim, senhor. Vi Lampião muitas vezes, mas nunca pertenci ao bando dele.
Ele é valente, seu Raimundo?
É, Tenente. É muito esperto, muito matreiro, dá a alma por uma boa fuga, mas é cabra valente, destemido, perigoso.
Acha que ele está por perto? E que é capaz de assaltar a cidade?
Pode ser, Tenente; mas é homem cauteloso, esperto, não se metendo em coisas complicadas, difíceis, incertas.

Ivan Bichara, in Carcará

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