1
Há
seis meses passados, tarde da noite, seu sono fora interrompido por
batidas secas na janela e, depois, na porta da frente.
Avivou
o candeeiro de querosene, logo que se levantou da rede; vestiu as
calças largas, enfiando o camisão dentro delas e, já bem desperto,
perguntou:
– Quem
é?
Alguém
com a voz abafada, mas audível, esclareceu:
– É
Laurindo, Anastácio.
A
cabeça ficou dando voltas: Laurindo... Laurindo... ah! Era um cabra
de Lampião. Aquilo cheirava a encrenca. E se dessem notícia de um
cangaceiro entrando em sua casa àquela hora da noite? Devia abrir?
Resolveu perguntar:
– Que
é que o amigo quer?
Laurindo
foi incisivo, mas suave:
– Sou
de paz. Preciso falar com você. É da parte de Sabino, do tenente
Sabino Gomes. Conversa ligeira.
– Você
está só?
Vira,
pela fresta da janela, que havia dois vultos, pelo menos. O cabra não
mentiu:
– Tou
eu e Bem-te-vi, companheiro. Gente minha.
Quando
abriu a porta, os dois homens entraram com rapidez e o seguraram,
tomando o candeeiro que erguera com a mão esquerda. Diante do ar
doméstico e da serenidade de Raimundo Anastácio, ficaram sem jeito,
largando-o. Laurindo quase se desculpou:
– Não
é nada, seu Raimundo; o Chefe quer falar com você, hoje. Está
esperando. Arrume-se para viajar.
Raimundo,
calmo, indagou:
– O
Chefe? Quem é o Chefe? É o Capitão Virgolino?
– Não,
homem. O Chefe é o Tenente Sabino, que tem, como o Capitão, patente
oficial dada pelo meu Padim Pade Cisso. A gente vai agora e
bem cedinho você está de volta.
– Onde
é que ele está? – perguntou Anastácio.
– Você
é besta, homem? Porque é que vamos lhe dizer onde o homem está?
Deixe de conversa e venha com a gente.
Bem-te-vi,
até então calado, mas segurando, por hábito, o cabo longo do
punhal, que alisava com o polegar da mão direita, dirigiu-se a
Laurindo:
– Tá
ficando tarde. Já devia estar voltando.
Raimundo
tinha receio que a mulher acordasse. A sorte é que Dorinha tinha o
um sono de pedra. Se se levantasse, ia fazer uma confusão danada.
Para sair da confusão era preciso arriscar. E ponderou, com
tranquilidade:
– Hoje
não pode ser. Amanhã sim.
– Por
que não agora?
– Quero
pedir a vocês que falem mais baixo. É que o Cabo Zé Gonçalves,
primo e irmão de criação da minha mulher, está dormindo no quarto
dos fundos do quintal. Se ele me pegar encilhando o animal a essa
hora, vai fazer perguntas. É desconfiado como os seiscentos diabos.
– Podemos
acabar com ele – alvitrou Bem-te-vi.
Laurindo
olhou com ar de espanto para o lado do seu companheiro e não disse
nada. Raimundo aproveitou o momento da dúvida e falou, como coisa
assentada:
– Vocês
me esperam, amanhã, na Rodagem, e de lá a gente vai junto. Tenho
negócios para as bandas de Alagoinha e Baixio; ninguém vai
estranhar mais uma viagem minha. Agora, sair nas barbas de Cabo Zé,
que é esperto, me parece arriscado tanto para mim como para vocês.
Laurindo
demorou um pouco, mas, afinal, concordou:
– Amanhã,
não. Depois de amanhã, quinta-feira. Espero você no sítio
Remédios. Coisa certa. O Chefe não brinca.
Raimundo
Anastácio se fez de distraído:
– É
o Capitão Virgolino Ferreira?
– Não,
homem – esclareceu, ríspido, o cangaceiro Laurindo. – O Capitão
Virgolino não está nessa. O Chefe do Grupo é o tenente Sabino,
entendeu?
– Entendi.
Pois digam ao Tenente Sabino que quinta-feira vou falar com ele,
Laurindo
recomendou:
– Essa
conversa fica entre nós, ouviu?
– Não
sou menino. Passei minha vida na vida que vocês estão começando
agora.
– Depois
de amanhã no sítio Remédios.
– Certo,
Laurindo.
– Nem
sua mulher precisa saber disso.
– Fique
descansado. Confie na minha experiência.
Laurindo
foi saindo, parou na soleira da porta, ia dizer alguma coisa, mas não
disse. O olhar duro de gavião fixou-se nos olhos de Raimundo
Anastácio, como se fosse uma espécie de última advertência.
Raimundo sabia que estava falando com um homem frio, decidido,
acostumado a matar. Apesar de estar vestido como um matuto, não
disfarçava, de forma nenhuma, os gestos medidos e cautelosos do
caçador. Ouviu, distintamente, ainda na calçada de sua casa,
Bem-te-vi, o cangaceiro mais novo, dizer ao outro:
– Não
confio nesse sujeito. Ou ele é muito esperto, ou já está meio
besta. Foi preciso você dizer duas vezes que o Chefe era Sabino e
não o Capitão. Sei não...
Como
ia sair dessa? Estava em papos de aranha. O perigo imediato era os
bandidos descobrirem sua mentira sobre o Cabo Zé Gonçalves, que não
dormia no fundo do quintal e só era parente de sua mulher por parte
de Adão. Fechou a porta com um suspiro de alívio. Entrou no quarto
onde a mulher dormia, apanhou o rifle 44, papo amarelo, e ficou na
porta da cozinha à espera. Passou, ali, até ouvir, lá pelas cinco
horas da madrugada, os galos começarem a cantar, desanimadamente.
Pensou
em contar a visita ao Delegado de então, Sargento Inaldo
Pedrosa, mas não o fez: ia aumentar a desconfiança da cidade contra
a sua pessoa e comprar, para toda a vida, o ódio de Sabino. Decisão
que lhe parecera menos ruim: não ir ao encontro marcado com Sabino e
não falar no assunto com ninguém.
Os
cangaceiros continuaram de forma intermitente, realizando pequenos
assaltos nas fazendas e povoações. O Sargento Pedrosa, vermelho e
atrabiliário, fora substituído pelo Tenente Elino Fernando. Ouvira
dizer que era um homem educado e calmo. Boas qualidades para um
oficial residente na Capital; no sertão brabo, o posto reclamava o
contrário: um homem duro, valente, com experiência de luta.
Quanto
a ele, Raimundo Anastácio, a posição era inalterada, pois era
objeto de desconfiança de algumas pessoas da cidade e, ainda, mal
visto pelos bandoleiros...
Romeu
Menandro Cruz, seu amigo, foi quem lhe falou, primeiro, sobre o novo
Delegado, cobrindo-o de elogios. Um dia, levou-o à presença do
Tenente Elino. Conversaram bastante, falando Raimundo do tempo em que
estivera no cangaço. Aproveitou para queixar-se de ter sido durante
muito tempo bode expiatório de tudo o que era autoridade policial
que passava pela cidade. O Tenente repetiu a pergunta:
– Você
conheceu Lampião?
– Sim,
senhor. Vi Lampião muitas vezes, mas nunca pertenci ao bando dele.
– Ele
é valente, seu Raimundo?
– É,
Tenente. É muito esperto, muito matreiro, dá a alma por uma boa
fuga, mas é cabra valente, destemido, perigoso.
– Acha
que ele está por perto? E que é capaz de assaltar a cidade?
– Pode
ser, Tenente; mas é homem cauteloso, esperto, não se metendo em
coisas complicadas, difíceis, incertas.
Ivan Bichara, in Carcará
Nenhum comentário:
Postar um comentário