domingo, 3 de julho de 2022

A morte do Pássaro Encantado

O Pássaro Encantado já estava velho. Em sua vida longa, voara por todas as partes do mundo. Voava para sentir saudade, porque sabia que é na saudade que o amor cresce. Mas voltava sempre para contar estórias para uma Menina que ficara à sua espera.
Agora estava cansado. Suas asas já não eram as asas da mocidade.
Lembrou-se de quando era criança. Lembrou-se do seu deslumbramento ao ver o céu cheio de estrelas. Diziam que era entre as estrelas que moravam os deuses. Abriu suas asas e voou para chegar à morada deles. Ele queria chegar aos deuses para pedir-lhes que descessem à terra para enxugar as lágrimas dos que sofriam. Mas, chegando lá, nada encontrou, apenas o vazio. Os deuses haviam emigrado, abandonando-nos órfãos.
Lembrou-se então dos seus voos em busca dos heróis que haveriam de transformar o mundo. Mas, quando os conheceu, achou-os pequenos, mesquinhos e cheios de ódio. Não amavam nem música nem poesia. Só falavam sobre lanças e espadas.
Lembrou-se da sua passagem pela casa da ciência, morada dos homens da verdade. Mas percebeu que ali os homens não tinham asas. Andavam cuidadosos olhando para o chão, com medo de tropeçar e cair. E os diplomas que distribuíam eram fetos mortos fechados em tubos de ensaio.
Lembrou-se então do seu encontro com a poesia e as crianças. Foi aí que encontrou a alegria. Foi aí que começou a contar estórias para as crianças. Porque elas são leves, sabem rir e sabem chorar.
Aconteceu, então, que uma Menina se apaixonou pelo Pássaro e lhe disse que viveria com ele até o fim da sua vida. O Pássaro também a amou e disse que viveria com ela até o fim da sua vida.
E, como em As mil e uma noites, contou-lhe muitas estórias. Contou-lhe sobre um mercado onde namorados se encontravam e andavam de mãos dadas. Contou-lhe outra sobre trens que levavam a lugares de ternura. E estórias sobre gargantas cortadas nas rochas de montanhas sob a chuva que caía, de pontes cobertas com tristes finais de amor, de bosques de árvores brancas, de serras tão altas que encostavam nas estrelas, de geleiras frias de gelos brancos e azuis, de lagos límpidos onde sereias nadavam nuas, de cachoeiras encantadas onde moravam elfos e gnomos, de lobos e falcões que se amavam sem poder se tocar, de uma pedra encantada à beira da cascata onde os namorados se amavam.
A Menina se sentia iluminada pelo canto do Pássaro e lhe cantarolava, sorridente: “You are my sunshine...”. Sim, o Pássaro Encantado iluminava o rosto da Menina como o sol. E o rosto da Menina iluminava o rosto do Pássaro como a lua.
E assim foi, por muito tempo. O Pássaro voava. A Menina sentia saudades. Ele voltava e eles se amavam.
Aconteceu, entretanto, que ao voltar de uma viagem (o Pássaro lhe trouxera um presente de amor) ele notou que algo acontecera com a Menina. Ela o recebeu com o rosto sério e lhe disse:
Alguma coisa aconteceu dentro de mim. Meu coração mudou. Preciso partir porque suas asas duras não podem me levar aos lugares suaves onde quero estar...
Foi só então que o Pássaro notou que levíssimas asas de beija-flor haviam crescido nas costas da Menina. Ela se preparava para partir.
A Menina partiu. O Pássaro ficou.
Ele sentiu então um grande cansaço. Quando o amor parte, o cansaço vem. Olhou para a Montanha Encantada que se erguia longe, no horizonte. Ali crescia a árvore do fruto mágico vermelho que incendiava aqueles que o comiam. Era o fruto do amor. Amor incendeia.
Diziam que a Fênix o comia para incendiar-se, transformar-se em cinzas, para renascer cem anos depois.
Sentiu que a Montanha Encantada o chamava. Abriu então as suas asas e voou sem parar e sem se cansar, até que chegou. O fruto mágico, vermelho como fogo, pendia de um galho.
Tudo correu mansamente. O Pássaro comeu o fruto vermelho do amor e o seu corpo se incendiou. Suas penas se desprenderam do corpo e voaram para longe, levadas pelo vento. Em cada uma delas, estava escrita uma das estórias que ele contara para a Menina. E elas voaram por todo o mundo.
Lembra-se do filme Forrest Gump? Ao final uma pequena pluma flutuava no ar. Nela estava escrita a estória que você acabou de ler…

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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