Não
é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um
romance. Depois que se despegam de mim, também eu os estranho. Não
se trata de transe, mas a concentração no escrever parece
tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente
dito. Alguma coisa, porém, posso tentar reconstituir, se é que
importa, e se responde ao que me foi perguntado.
O
que me lembro do conto “Feliz aniversário”, por exemplo, é da
impressão de uma festa que não foi diferente de outras diferentes
de aniversário; mas aquele era um dia pesado de verão, e acho até
que nem pus a ideia de verão no conto. Tive uma impressão, de onde
resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e
necessidade de aprofundar o que se sente. Anos depois, ao deparar com
essas linhas, a história inteira nasceu, com uma rapidez de quem
estivesse transcrevendo cena já vista – e no entanto nada do que
escrevi aconteceu naquela ou em outra festa. Muito tempo depois um
amigo perguntou-me de quem era aquela avó. Respondi que era a avó
dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio
espontânea, e com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e
dela eu só conhecera, em criança, um retrato, nada mais.
“Mistério
em São Cristóvão” é mistério para mim: fui escrevendo
tranquilamente como quem desenrola um novelo de linha. Não encontrei
a menor dificuldade. Creio que a ausência de dificuldade veio da
própria concepção do conto: sua atmosfera talvez precisasse dessa
minha atitude de isenção, de certa não participação. A falta de
dificuldade é capaz de ter sido técnica interna, modo de abordar,
delicadeza, distração fingida.
De
“Devaneio e embriaguez duma rapariga” sei que me diverti tanto
que foi mesmo um prazer escrever. Enquanto durou o trabalho, estava
sempre de um bom humor diferente do diário e, apesar de os outros
não chegarem a notar, eu falava à moda portuguesa, fazendo, ao que
me parece, experiência de linguagem. Foi ótimo escrever sobre a
portuguesa.
De
“Os laços de família” não gravei nada.
Do
conto “Amor” lembro duas coisas: uma, ao escrever da intensidade
com que inesperadamente caí com o personagem dentro de um Jardim
Botânico não calculado, e de onde quase não conseguimos sair, de
tão encipoados e meio hipnotizados – a ponto de eu ter que fazer
meu personagem chamar o guarda para abrir os portões já fechados,
senão passaríamos a morar ali mesmo até hoje. A segunda coisa de
que me lembro é de um amigo lendo a história datilografada para
criticá-la, e eu, ao ouvi-lo em voz humana e familiar, tendo de
súbito a impressão de que só naquele instante ela nascia, e nascia
já feita, como criança nasce. Este momento foi o melhor de todos: o
conto ali me foi dado, e eu o recebi, ou ali eu o dei e ele foi
recebido, ou as duas coisas que são uma só.
De
“O jantar” nada sei.
“Uma
galinha” foi escrito em cerca de meia hora. Haviam me encomendado
uma crônica, eu estava tentando sem tentar propriamente, e terminei
não entregando; até que um dia notei que aquela era uma história
inteiramente redonda, e senti com que amor a escrevera. Vi também
que escrevera um conto, e que ali estava o gosto que sempre tivera
por bichos, uma das formas acessíveis de gente.
“Começos
de uma fortuna” foi escrito mais para ver no que daria tentar uma
técnica tão leve que apenas se entremeasse na história. Foi
construído meio a frio, e eu guiada apenas pela curiosidade. Mais um
exercício de escalas.
“Preciosidade”
é um pouco irritante, terminei antipatizando com a menina, e depois,
pedindo-lhe desculpas por antipatizar, e na hora de pedir desculpas
tendo vontade de não pedir mesmo. Terminei arrumando a vida dela
mais por desencargo de consciência e por responsabilidade que por
amor. Escrever assim não vale a pena, envolve de um modo errado,
tira a paciência. Tenho a impressão de que, mesmo se eu pudesse
fazer desse conto um conto bom, ele intrinsecamente não prestaria.
“Imitação
da rosa” usou vários pais e mães para nascer. Houve o choque
inicial da notícia de alguém que adoecera, sem eu entender por quê.
Houve nesse mesmo dia rosas que me mandaram, e que reparti com uma
amiga. Houve essa constante na vida de todos, que é a rosa como
flor. E houve tudo o mais que não sei, e que é o caldo de cultura
de qualquer história. “Imitação” me deu a chance de usar um
tom monótono que me satisfaz muito: a repetição me é agradável,
e repetição acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a
pouco, cantilena enjoada diz alguma coisa.
“O
crime do professor de matemática” chamava-se antes “O crime”,
e foi publicado. Anos depois entendi que o conto simplesmente não
fora escrito. Então escrevi-o. Permanece no entanto a impressão de
que continua não escrito. Ainda não entendo o professor de
matemática, embora saiba que ele é o que eu disse.
“A
menor mulher do mundo” me lembra domingo, primavera em Washington,
criança adormecendo no colo no meio de um passeio, primeiros calores
de maio – enquanto a menor mulher do mundo (uma notícia lida no
jornal) intensificava tudo isso num lugar que me parece o nascedouro
do mundo: África. Creio que também este conto vem de meu amor por
bichos; parece-me que sinto os bichos como uma das coisas ainda muito
próximas de Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda
quente do próprio nascimento; e, no entanto, coisa já se pondo
imediatamente de pé, e já vivendo toda, e em cada minuto vivendo de
uma vez, nunca aos poucos apenas, nunca se poupando, nunca se
gastando.
“O
búfalo” me lembra muito vagamente um rosto que vi numa mulher ou
em várias, ou em homens; e uma das mil visitas que fiz a jardins
zoológicos. Nessa, um tigre olhou para mim, eu olhei para ele, ele
sustentou o olhar, eu não, e vim embora até hoje. O conto nada tem
a ver com isso, foi escrito e deixado de lado. Um dia reli-o e senti
um choque de mal-estar e horror.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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