Que
pensará Deus de Ratzinger? Que pensará Deus da Igreja Católica
Apostólica Romana de que este Ratzinger é soberano papa? Que eu
saiba (e escusado será dizer que sei bastante pouco), até hoje
ninguém se atreveu a formular estas heréticas perguntas, talvez por
saber-se, de antemão, que não há nem haverá nunca resposta para
elas. Como escrevi em horas de vã interrogação metafísica, há
uns bons quinze anos, Deus é o silêncio do universo e o homem o
grito que dá sentido a esse silêncio. Está nos Cadernos de
Lanzarote e tem sido frequentemente citado por teólogos do país
vizinho que tiveram a bondade de me ler. Claro que para que Deus
pense alguma coisa de Ratzinger ou da igreja que o papa anda a querer
salvar de uma morte mais do que previsível, seja por inanição seja
por não encontrar ouvidos que a escutem nem fé que lhe reforce os
alicerces, será necessário demonstrar a existência do dito Deus,
tarefa entre todas impossível, não obstante as supostas provas
arquitectadas por Santo Anselmo ou aquele exemplo de Santo Agostinho,
de esvaziar os oceanos com um balde furado ou mesmo sem furo nenhum.
Do que Deus, caso exista, deve estar agradecido a Ratzinger é pela
preocupação que este tem manifestado nos últimos tempos sobre o
delicado estado da fé católica. A gente não vai à missa, deixou
de acreditar nos dogmas e cumprir preceitos que para os seus
antepassados, na maior parte dos casos, constituíram a base da
própria vida espiritual, senão também da vida material, como
sucedeu, por exemplo, com muitos dos banqueiros dos primórdios do
capitalismo, severos calvinistas, e, tanto quanto é possível supor,
de uma honestidade pessoal e profissional à prova de qualquer
tentação demoníaca em forma de subprime. O leitor estará
talvez a pensar que esta súbita inflexão no transcendente assunto
que me havia proposto abordar, o sínodo episcopal reunido em Roma,
se destinaria, afinal, a introduzir, com mais ou menos jeito
dialéctico, uma crítica ao comportamento irregular (é o mínimo
que se pode dizer) dos banqueiros nossos contemporâneos. Não foi
essa a minha intenção nem essa é a minha competência, se alguma
tenho.
Voltemos
então a Ratzinger. A este homem, decerto inteligente e informado,
com uma vida activíssima nos âmbitos vaticanais e adjacentes (baste
dizer que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
continuadora, por outros métodos, do ominoso Tribunal do Santo
Ofício, mais conhecido por Inquisição), ocorreu-lhe algo que não
se esperaria de alguém com a sua responsabilidade, cuja fé devemos
respeitar, mas não a expressão do seu pensamento medieval.
Escandalizado com os laicismos, frustrado pelo abandono dos fiéis,
abriu a boca na missa com que iniciou o sínodo para soltar
enormidades como esta: “Se olhamos a História, vemo-nos obrigados
a admitir que não são únicos este distanciamento e esta rebelião
dos cristãos incoerentes. Em consequência disso, Deus, embora não
faltando nunca à sua promessa de salvação, teve de recorrer amiúde
ao castigo”. Na minha aldeia dizia-se que Deus castiga sem pau nem
pedra, por isso é de temer que venha por aí outro dilúvio que
afogue de uma vez os ateus, os agnósticos, os laicos em geral e
outros fautores de desordem espiritual. A não ser, sendo os
desígnios de Deus infinitos e ignotos, que o actual presidente dos
Estados Unidos já tenha sido parte do castigo que nos está
reservado. Tudo é possível se o quer Deus. Com a imprescindível
condição de que exista, claro está. Se não existe (pelo menos
nunca falou com Ratzinger), então tudo isto são histórias que já
não assustam ninguém. Que Deus é eterno, dizem, e tem tempo para
tudo. Eterno será, admitamo-lo para não contrariar o papa, mas a
sua eternidade é só a de um eterno não-ser.
José Saramago, in O Caderno
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