Passei
uma última vez pela livraria José Olympio, na rua do Ouvidor, para
conferir minhas recordações com os objetos que a elas estão
ligados. Daqui a um mês, esses objetos quedarão guardados em nós,
numa caixa invisível, que abrange prateleiras, balcão, vozes,
pensamentos, pessoas. Bem sei que a vida é “duração” e
mobilidade, como ensina o filósofo, e não há razão de melancolia:
a loja será desmanchada para se recompor em edifício novo, nós
mesmos, com o tempo, seremos recompostos sob novas espécies, e o
fato de não termos consciência física da permanência na
transformação não impede o seu alegre desenvolvimento. Olhei para
o velho Castilho e o Altamir, procurei o rapazinho Athos, que hoje é
homem-feito, perguntei pelo Daniel, que defende outro setor, por
todos da velha guarda, e verifiquei de súbito que a própria saudade
é dinâmica; eu estava ali há vinte anos passados, desembarcado de
Minas, como o próprio José Olympio, de São Paulo. Se alguns
“viciados” da casa, como Graciliano Ramos, aparentemente tinham
morrido, a glória do nome provava a mentira do desaparecimento. J.
O. criara uma coisa que não acaba mais.
A
livraria, a princípio, não tinha aquele lugarzinho nos fundos, com
o banco para os escritores se sentarem e baterem papo (uma ou duas
vezes, trocaram sopapo), esse banco preto que viera da biblioteca de
Alfredo Pujol e está agora recolhido à sala de trabalho do editor,
como “o banco do Graciliano”. Lá era o escritório de José
Olympio, que depois passou ao andar superior. Os literatos foram
chegando, José Lins do Rego, Hermes Lima, Jorge Amado, Murilo
Mendes, que acabara de converter-se ao catolicismo ortodoxo, Marques
Rebelo, a formosura de Adalgisa Nery, o pessimismo de Graciliano,
Eneida cordial e sua gargalhada, a ironia de Tarquínio, os derrames
de um, as mentiras de outro, e o local foi-se convertendo no que se
chama um foco. Rapazes que desembarcassem de um “ita” do Norte ou
do trenzinho fumacento de Minas tinham de ir, correndo, respirar
aqueles ares ilustres.
Com
esse colorido de vanguarda, não havia outra casa no Rio. Mesmo tendo
o hábito de percorrer livrarias, era naquela que o escritor pousava
para confrontar suas ideias com as dos confrades, para se sentir, não
um consumidor de livros, mas um ser caracterizado e participante, às
voltas com as dúvidas e complicações inerentes à sua natureza
imaginativa e hipersensível, e desejoso de apoio e comunicação.
Por
outro lado, não se tratava apenas de uma loja simpática. Era também
uma editora revolucionária, que lançava com ímpeto nomes
conhecidos de pouca gente ou de ninguém.
Apresentava
um livro diferente e elegante, formato padronizado, capa desenhada
por Santa Rosa (o que nem sempre era fácil de conseguir, pois o
Santa, como a felicidade, não estava onde o procurassem, ou nunca o
procuravam onde poderia estar), e o aspecto gráfico e o prestígio
da casa acendiam nos escritores o desejo de figurar em seu catálogo.
José Olympio editou com o mesmo espírito autores da direita, do
centro, da esquerda e do planeta Sírio, e se aos de determinado
matiz tocou um papel mais saliente durante certo tempo, isto se deve
à tendência da época, aos rumos da sensibilidade, tangida pelos
acontecimentos mundiais. J. O. logo se revelou excelente praça, pois
não editava apenas, ficava querendo bem aos editados, interessava-se
por eles junto a quem de direito, ajudava-os em silêncio, criava em
torno da materialidade das relações profissionais uma coisa
abstrata mas imperante, a que ele chamou a Casa. J. O. em geral não
emprega a primeira pessoa; diz: a Casa. A Casa não pode editar um
livro nessas condições, a Casa ficou magoada, a Casa está feliz…
O fato é que não se pode compreender a efervescência de ideias, de
planos, o sentido socializante da literatura por volta de 35 a 37,
sem a presença da Casa. O romance sofrido do Nordeste, situado em
30, ganhou ali direitos de cidade. O modernismo, então ainda
ridicularizado por jornais e salões, começou a funcionar como
produto editorial, que o público julgaria diretamente. Os
“Documentos Brasileiros” se converteram num laboratório de
crítica, pesquisa social e interpretação histórica do Brasil. De
modo que aquilo era uma loja de livros, à primeira vista; mas tinha
alma.
A
Casa continua.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amondoeira
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