sexta-feira, 24 de junho de 2022

Mais nobres e capazes que nós!


[...]
Quando for dia, pensou, hei-de puxar o anzol das quarenta braças e cortá-lo, para ligar o resto. Terei perdido umas duzentas braças de bom cordel catalão, mais os anzóis e os chumbos. Isso pode ser substituído. Mas quem substitui este peixe, se apanho outro que me corte a linha? Não sei o que era este peixe que mesmo agora mordeu. Poderá ter sido um tubarão, um espadarte. Nem cheguei a senti-lo. Tinha de me ver livre dele”.
E, alto, disse: – Quem me dera o rapaz.
Mas não tens cá o rapaz. Só te tens a ti, e o melhor é meteres dentro a última linha às escuras ou às claras, e cortar o resto, e juntar as pontas”.
Assim fez. Era difícil no escuro, e, certa vez, o peixe deu um sacão que o atirou de bruços e o fez cortar-se na cara, abaixo dos olhos. O sangue correu pela face, mas coagulou e secou antes de chegar ao queixo, e o velho arrastou-se para a proa e repousou contra a madeira. Ajustou o saco, e cuidadosamente desviou a linha para outra parte dos ombros e, segurando-a contra estes, cautelosamente apreciou o esforço do peixe e, com a mão, a velocidade do esquife pelas águas.
Porque terá dado ele este sacão, pensou. O fio deve ter escorregado na corcunda do dorso. Por certo que as costas dele não lhe doem como as minhas. Mas não pode ficar eternamente a rebocar o barco, por grande que seja. Agora estou livre de tudo que poderia atrapalhar, e tenho muita linha de reserva: é tudo quanto um homem pode querer”.
Peixe! – disse a meia voz. – Hei-de ficar contigo até morrer.
Também ele há-de ficar”, pensou, e esperou pela luz do dia. Fazia frio, na hora antes do amanhecer, e encostou-se com mais força à madeira, para aquecer-se. “Posso aguentar como ele pode”, pensou. Ao primeiro clarão do dia, a linha afastou-se e afundou-se na água. O barco seguia incessantemente, e a primeira fímbria do sol encontrou a linha no ombro direito do velho.
Vai de rumo ao norte – disse o velho. “A corrente levar-nos-ia para leste, pensou. Quem me dera que ele se voltasse para ir na corrente. Isso mostraria que estava a cansar-se”.
Quando o sol já ia mais alto, o velho verificou que o peixe se não cansara. Havia apenas um sinal favorável. A inclinação da linha mostrava que nadava a menor profundidade. O que não significava necessariamente que ele iria saltar. Mas podia.
Deus o faça saltar. Tenho linha de sobra para lhe dar.
Talvez que, se eu aumentar só um poucochinho a tensão, o magoe e faça saltar, pensou. Agora, que é dia, que salte, para encher de ar os sacos ao longo da espinha e não poder ir ao fundo quando morrer”.
Tentou aumentar a tensão, mas a linha fora esticada a ponto de rotura, desde que ele apanhara o peixe, e, ao encostar-se para a puxar, sentiu-lhe a dureza e viu que não podia tendê-la mais. “Nem devo mexer-me, pensou. De cada vez que me mexo, alargo o golpe que o anzol faz, e depois, quando ele saltar, atira com o anzol fora. Seja como for, com sol é melhor, e ao menos não preciso estar a ver o que acontece”.
Havia na linha algas amarelas, mas o velho sabia que apenas eram como que uma fateixa suplementar, e até ficou contente.
Eram os sargaços do Golfo que tanta fosforescência haviam dado de noite.
Peixe – disse. – Amo-te e respeito-te muito. Mas hei-de matar-te, antes de o dia acabar.
Esperemos que sim”, pensou.
Um pequeno pássaro veio do norte em direção ao esquife.
Era uma toutinegra e voava rente às águas. O velho bem via que estava muito cansada.
O pássaro veio à popa do barco, onde pousou. Depois, voou em torno da cabeça do velho, e pousou na linha, onde se sentia mais comodamente.
Que idade tens? – perguntou-lhe o velho. – É a tua primeira viagem?
O pássaro fitou-o, enquanto ele lhe falava. Estava tão cansado que nem examinava a linha, e tremia nas delicadas patas enclavinhadas nela.
Está tesa, tesa demais – disse o velho. – Não devias estar tão cansado, depois de uma noite sem vento. No que estarão dando os pássaros?
Os falcões, pensou, que saem ao largo, ao encontro deles”.
Mas nada disto disse ao pássaro, que de resto não sabia entendê-lo e não tardaria a aprender quem os falcões eram.
Repousa à vontade, passarito. E, depois, vai, e vive a tua vida, como os homens, os pássaros e os peixes.
Deu-lhe coragem a conversa, porque as costas haviam ficado dormentes de noite e lhe doíam, agora, de verdade.
Fica em minha casa, se preferes, ó pássaro. Tenho pena de não poder içar a vela e levar-te com a aragem que se está levantando. Mas estou com um amigo.
Nesse momento, o peixe deu um puxão súbito, que atirou o velho para o fundo da proa, e tê-lo-ia levado pela borda fora, se não se houvesse agarrado e não tivesse largado mais linha.
O pássaro levantara voo ao estremecer a linha, e o velho nem o vira ir-se embora. Com a mão direita, apalpou cautelosamente a linha, e reparou que a mão tinha sangue.
Feriu-se nalguma coisa – disse em voz alta, e puxou a linha, para ver se conseguia desviar o peixe. Mas, ao atingir o ponto de rotura, segurou-a firmemente e repôs-se aguentando a tensão do fio.
Agora bem a sentes, peixe. E Deus bem sabe que eu também.
Olhou em volta, procurando o pássaro, pois lhe agradaria a companhia dele. O pássaro desaparecera.
Não te demoraste muito, pensou o homem. Mas, para onde vais, mais perto da costa, é pior. Como deixei eu que o peixe me cortasse, com este puxão súbito que deu? Estou a ficar muito estúpido. Ou talvez estivesse a olhar para o passarito e a pensar nele. Pois vou prestar atenção ao meu trabalho, e tenho de comer a ‘tuna’, para que as forças me não faltem”.
Quem me dera que o rapaz aqui estivesse, e que eu tivesse sal – exclamou.
Passando o peso da linha para o ombro esquerdo e ajoelhando cuidadosamente, lavou a mão no oceano e manteve-a mergulhada, vendo o sangue afastar-se em fios e o movimento regular das águas contra a mão, no deslizar do barco.
Vais mais devagar.
O velho teria gostado de conservar mais tempo a mão na água salgada, mas temia outro sacão brusco do peixe, e endireitou-se, passou os braços no banco, e pôs a mão ao sol. Era apenas uma esfoladela da linha, que o cortara até à carne. Mas era na parte útil da mão. E sabia que, antes do fim, precisaria das mãos, e não gostava de se ver cortado antes daquilo principiar.
E agora – disse, quando a mão secou – vou comer a “tuna”. Posso puxá-la com o gancho e comê-la aqui recostado.
Ajoelhou e, com o gancho, puxou o peixe até ele, evitando as linhas arrumadas. E, segurando a linha outra vez com o ombro esquerdo, e firmando-se com a mão e o braço esquerdo, tirou o peixe do gancho e pôs o gancho no seu lugar.
Assentando um joelho no peixe, arrancou tiras de carne vermelha-escura, longitudinalmente, da base da cabeça até à cauda. Eram tiras em forma de cunha, e tirou-as de junto à espinha dorsal até ao pé da barriga. Depois de ter arrancado seis tiras, estendeu-as na madeira da popa, limpou a navalha nas calças e, pegando na carcaça do peixe pela cauda, atirou-a pela borda fora.
Não me parece que consiga comer uma inteira – disse, e cortou uma das tiras com a navalha. Sentia o permanente e forte impulso da linha e a mão esquerda dormente, tesa na pesada corda. Fitou-a com desprezo. Que espécie de mão é esta?... Pois dorme, se te apraz. Enclavinha-te. Não te serve de nada.
Anda”, pensou, e mergulhava o olhar na água escura, seguindo a inclinação da linha. “Come, que darás força à mão. A culpa não é dela, e há muitas horas que seguras o peixe. Mas isto não há-de durar sempre. Trata de comer”.
Pegou num pedaço, que meteu na boca e mastigou devagar. Não era desagradável.
Mastiga bem, pensou, que não te escape um suco. Não seria mau, com um pouco de limão ou sal.
Como te sentes, mão? – perguntou à mão dormente quase com uma rigidez como a da morte.
Vou comer mais, em tua intenção.
Comeu a outra parte do pedaço que cortara em duas.
Mastigou-a cuidadosamente e, no fim, cuspiu a pele.
Então que tal, mão? Ou ainda não se sabe nada?
Pegou noutro pedaço, inteiro, que mastigou.
É peixe de sangue forte, pensou. Foi uma sorte ser este e não delfim. Delfim é carne fraca. Este conserva a força toda”.
Não faz sentido não se ser prático. Quem me dera ter sal. Como não sei se o sal secará ou tornará podre o que me resta, o melhor é comer tudo, apesar de não ter fome. O peixe está calmo e vai certo. Como tudo, e fico pronto para tudo”.
Tem paciência, mão – disse. – Faço isto por ti.
Quem me dera dar de comer ao peixe, pensou. É meu irmão. Mas tenho de o matar, e para isso preciso de forças”. Devagar e conscienciosamente, comeu todas as tiras de peixe.
Endireitou-se, limpando a mão às calças.
E agora – exclamou – podes largar a corda, mão, que eu aguento isso só com o braço direito, até te deixares de asneiras. – Pôs o pé esquerdo na linha, que a mão esquerda segurara, e fez força contra a tensão nas costas.
Deus permita que a cãibra passe, porque não sei o que o peixe vai fazer.
Parece sossegado, pensou, e que segue o seu plano. Mas que plano será? E o meu, qual é? O meu, tenho eu de o improvisar segundo o dele, porque ele é muito grande. Se saltar, posso matá-lo. Mas fica-se para sempre. Pois ficarei com ele para sempre”.
Esfregou a mão dormente contra as calças, e tentou mexer os dedos. Mas a mão não se abria. "Talvez abra com o sol, pensou. Talvez abra, quando estiver digerido o peixe cru e forte. Se eu tiver de a abrir, abro-a, custe o que custar.
Mas não quero agora forçá-la a abrir-se. Que se abra por si, que volte a si à sua vontade. Depois do que a usei e abusei durante a noite, quando foi preciso soltar e ligar as várias linhas". Alongou os olhos pelo mar, e notou como estava só.
Mas distinguia os prismas na água profunda e sombria e a linha estendendo-se adiante e a estranha ondulação da calmaria. As nuvens amontoavam-se ante os alísios, e, olhando em frente, viu um bando de patos bravos desenhando-se contra o céu, acima das águas, depois esborratando-se, desenhando-se outra vez, e reconheceu que o homem nunca está só no mar.
Pensou em como alguns homens temem perder a terra de vista, indo num pequeno barco, e sabia quanta razão eles tinham, nos meses de repentino mau tempo. Mas agora era o tempo dos furacões e, quando não há furacões, os meses de furacões são os melhores do ano.
Se há furacão, a gente, andando no mar, vê os sinais dele no céu, muitos dias antes. Em terra ninguém vê, porque não se sabe que distinguir. A terra há-de também influir na forma das nuvens. Mas não está para vir nenhum furacão”.
Olhou para o céu e viu os brancos cúmulos erguendo-se como simpáticos barquinhos de gelado e, altas por cima, estavam as finas penas dos cirros contra o vasto céu de Setembro.
Brisa ligeira – disse. – Tempo melhor para mim do que para ti, ó peixe.
A mão esquerda continuava adormecida, mas conseguia abri-la gradualmente.
Detesto uma cãibra, pensou. É uma traição do nosso próprio corpo. É humilhante ter diarreia diante dos outros, envenenado pela ptomaína, ou vomitá-la. Mas uma cãibra – e, ao pensar, dizia calambre – humilha-nos particularmente quando estamos sós”.
Se o rapaz aqui estivesse, esfregava-me a mão por mim, e friccionaria desde o antebraço, pensou. Mas há-de abrir-se de todo”.
Nisto, com a mão direita sentiu o esticão na linha, antes de ver na água a inclinação alterar-se. Curvou-se contra a linha e bateu com a mão, depressa e forte, na anca, e viu a linha a elevar-se devagar.
Vem para cima! – exclamou. – Anda, mão. Por favor, anda.
A linha subia devagar e firme, e então a superfície do oceano arqueou à frente do barco, e o peixe apareceu.
Apareceu interminavelmente, e dos lombos lhe escorria água.
Brilhava ao sol, e a cabeça e o dorso eram púrpura escura, e ao sol as listras nos lados eram largas e cor de alfazema. O dardo era do tamanho de uma pá de “Baseball” e em forma de florete. Saiu a todo o comprimento fora de água e voltou a ela, suavemente, como um nadador, e o velho viu a grande foice da cauda afundar-se e a linha começar a correr.
É dois pés mais comprido que o esquife – disse o velho. A linha corria depressa, mas regularmente, e o peixe não estava assustado. O velho procurava com ambas as mãos manter a linha dentro da tensão de rotura. Sabia que, se não conseguia retardar o peixe com uma pressão firme, o peixe era capaz de levar a linha toda e rebentá-la.
É um grande peixe, e tenho de o convencer, pensou. Não devo deixá-lo nunca tomar conhecimento da sua própria força, nem do que poderia fazer se corresse. Se eu estivesse no lugar dele, jogava o tudo por tudo, até que alguma coisa rebentasse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, que os matamos, embora sejam mais nobres e mais capazes”.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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