Imagem: A. D.
Nossa
casa é antiga, embora não secular — explicava-me aquela senhora —
e o senhor sabe como essas construções antigas têm pé-direito
alto, um despropósito. Nossos dois andares enfrentam bem uns três
dos edifícios vizinhos. Isso lhe dará ideia da altura de minhas
buganvílias, pois as raízes delas se misturam com os alicerces, e
temos praticamente dois telhados: o comum, e esse lençol rubro de
flores, quando vem pintando a primavera.
Não,
não pense que as flores cobrem o telhado: elas formam o seu teto
especial, no terraço, dominando a pérgula — e a boa senhora
sorriu — que o antigo proprietário fez questão de construir, para
dar um ar meio silvestre, meio parnasiano, àquela superfície árida
de ladrilhos. Nossa casa está longe de ser bonita, embora eu goste
muito dela; e quando as buganvílias funcionam a todo vapor, na
florescência, não imagina como a nossa modesta alvenaria se
transforma numa coisa espetacular, todo aquele dilúvio de escarlate
que a brisa do Brasil beija e balança, os ladrilhos também se
deixam atapetar de florinhas, e até o cãozinho, indo brincar no
terraço, costuma voltar trazendo no pelo branco manchas encarnadas
de primavera. Caem florinhas nas panelas da cozinheira, cá embaixo,
e se a gente deixar entreaberta a janela do banheiro, pode tomar seu
banho de Bougainvillea spectabilis, Willd., ou que nome tenha;
sei que é uma nictaginácea, ouviu?
Tudo
isso é simpático, mas tem seus inconvenientes. Quando nos
instalamos, um mestre de obras ponderou: “Eu, se fosse madame,
cortava essas trepadeiras. Veja como os troncos encorparam, e como as
paredes vão trincando. A raiz está abalando tudo”. Não tive
coragem de matar uma planta de Deus, aliás duas, subindo lado a
lado, confundindo lá em cima os galhos e fazendo de nossa casa uma
coisa diferente, no cinzento da Zona Sul (os moradores dos edifícios
garantem que, vista do alto, a casa vale muito mais do que vista da
rua, por causa das buganvílias, que fazem bem aos olhos). E depois,
já tivemos que sacrificar a goiabeira para abrir mais uma
caixa-d’água subterrânea, Deus nos perdoe. Não, as buganvílias,
não. A casa pode vir abaixo, e seremos soterrados sob tijolos e
flores, mas todo o poder às buganvílias!
Há
dias foi engraçado, porque convidamos um casal para almoçar, e já
na horinha me lembrei que não tínhamos flores em casa. Fui
comprá-las correndo, mas a greve da Leopoldina acabara com elas, ou
era a própria greve das flores, que pediam aumento de orvalho; não
havia uma triste corola à venda. E não era dia de feira no bairro,
de sorte que não se podia recorrer a flores de calçada. Voltei de
alma ferida, porque se pode trabalhar sem flor, dormir sem flor, mas
comer sem flor é desagradável, tira o sal. Estava imersa em vil
desânimo, quando me pousou no nariz, trazida pelo vento, a florinha
de buganvília, cujos ramos estão explodindo de vermelho, entre
pinceladas verdes. Voei ao quarto de depósito, saí de lá brandindo
a escada de três metros, e icei-a na pérgula. E com risco de romper
o esqueleto, pois escada de casa velha também é velha e
desconjuntada, aos olhos divertidos ou indignados da vizinhança, fui
ceifando com tesoura aquele mar de florinhas sanguíneas. Enchi duas
cestas enormes, e nunca minha casa ficou tão bonita como enfeitada
assim à última hora, sem gastar um cruzeiro; o casal ficou
encantado, mas que beleza de flor, então eu expliquei que buganvília
não tem propriamente flores, tem brácteas, que são folhas iguais
às outras, mas valorizadas pelo vermelho. Deu tudo certo, e eu senti
que os imensos pés de buganvílias me agradeciam e pagavam dessa
maneira a decisão de poupar-lhes a vida até a consumação dos
séculos — ou da nossa velha casa, que eles vão destruindo
poeticamente.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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