segunda-feira, 23 de maio de 2022

Pedigree visível

De madrugada, mais assustada que o filhote e sem outra providência à mão, tomei vinte gotas de mulungu. Acordei boa, sol no céu e na alma, um sol cordial, palavra com pedigree visível pro bem e pro mal. Fico agitada quanto a ‘desconforto pré-cordial’, poética de bulas. Conheci a palavra lírica e doce, dulcíssima. Contra a maçada das gripes, meu pai, ele mesmo, ia atrás de flores de mamão, camará, gervão, e fazia o cordial, o açúcar grudando no fundo da caneca. Quando Naomi aprendeu a fazer licores, ficavam tão bons que lhe sugeri um nome: laetitia cordis. Ficou só o nome, cansou-se e inventou um bombom de gergelim de excelência ainda sem nome. Ia dar dinheiro. Esperava para hoje o telefonema de um sujeito e fiz o que pretendia, ser cordial com ele: olha aqui, Átila, eu não vou fazer o que me pediu, porque me sinto usada, desrespeitada e não negocio, não pechincho, não converso mais sobre o assunto. Foi uma resposta cordial, pois do fundo do coração é que me saíram as palavras. Minha fome até aumentou quando pus, bem devagar, o telefone no gancho.

Adélia Prado, in Quero minha mãe

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