sábado, 5 de março de 2022

Vamos brincar

A moda de brinquedos para homem entrou com tal disposição de pegar, que as crianças, em pânico, se interrogam:
Será que temos de ganhar a vida, enquanto eles brincam?
Pois brincar é tão bom, e os adultos se comprazem tanto com os jogos inventados para eles, que alguns já abandonaram definitivamente o trabalho, entregando-se à curtição lúdica, em regime de tempo integral.
Me sinto muito gratificado — confessa meu vizinho de trinta e cinco anos, que antes mourejava na Bolsa (era trabalho de mouro, diz ele) e só agora percebeu que mercado de títulos tem muito de brinquedo: pula, desce, roda, enguiça, torna a rodar… mas funde a cuca.
O Perclique, não. É criativo, estimula a expansão do vocabulário, que andava ficando muito curto, você sabe o que é o português falado hoje por aí. Acelera a atividade mental… e não depende de fatores subterrâneos, entende?
Não sei se já repararam. Em loja de brinquedos, ultimamente, só entra adulto. Desacompanhado. Não vai comprar nada para o filho que faz doze anos, é para si mesmo, porque o colega de escritório lhe garantiu que Palito Bol é uma parada.
Uns entram tímidos, disfarçando, não querem proclamar por enquanto a volta à idade do brinquedo, e morrem de vergonha se lá dentro está o Hermenegildo, que por sua vez se esconde, ou não se esconde: há também os desinibidos, que trazem a infância redescoberta no rosto, no riso franco, na alegria de terem reconquistado o direito de brincar.
Conheço um que, na gula de aproveitar (já fez cinquenta anos, e as coisas que eram desimportantes para ele trocaram de valor com as importantes), toma descaradamente os brinquedos dos pequenos, e chega a brigar com eles quando reclamam seus direitos:
Os direitos são iguais, e além disto eu não tive a infância regalada que vocês têm.
Filhos mais compreensivos não só permitem o uso de seus aparelhos e jogos pelos pais, como até lhes ministram noções de como fazer funcionar “esse troço aí”. Sabem que adulto custa muito a aprender as coisas, carece de espontaneidade, irrita-se, cansa-se facilmente. É preciso ter paciência com ele. O adulto está apenas começando a descobrir o inconveniente de ser adulto.
O mundo, isto é, o homem anda realmente fatigado, tem coisas demais, problemas e responsabilidades demais. Até ser importante dói. Vamos esquecer tudo isso — diz ele, em monólogo interior — e aderir à Bola 5. Nada de entretenimentos convencionais nem de emoções extraconvencionais, pois o fenomenal é um de meus tédios mais assíduos. E bolas para a famigerada televisão, que, sendo a cores, se parece demais com as revistas ilustradas, que me enjoam de tanto colorido. O Mahfuz, produtor de TV, está radiante:
Programa novo, subindo no Ibope?
Não. É o jogo da velha, que eu jogo toda noite, no horário do meu programa.
Amigos fazem questão de explicar-me que brinquedo de adulto não tem nada de pueril, foi concebido na escala mental do homem. É ainda um esforço de adulto para fazer passar o brinquedo, livrando-se da pecha de infantilismo. Mas vem o garoto ou garota, entra na brincadeira e conta mais pontos que o velho. Fiau!
Sendo assim, homens e mulheres dispostos a brincar (no sentido puro da palavra), vamos deixar de ser hipócritas, e confessemos que a sedução maior dos brinquedos é essa mesmo, é serem brinquedos e condizerem com a eterna criança e sua vida ativa. Deixemos de lado as últimas e desmanteladas pretensões à suposta idade da razão, que é quase sempre desrazão. E adotemos não somente os jogos com fumaças cerebrais, que estão na moda, mas também a amarelinha, o chicote-queimado, o tempo-será, a gata-parida, ocupações deliciosas que tiram todo o tempo e prazer de guerrear.

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

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