[…]
E o Jõe contava casos. Contou. Caso que se passou no sertão
jequitinhão, no arraial de São João Leão, perto da terra dele,
Jõe. Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte.
Naquele
lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às
outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu,
amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socôrro,
reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram
certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias
antes em saúde apreciável, por isso se disse que só de acesso do
coração era que podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do
dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.
Maria
Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu,
foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dôr sem
demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo
visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota foi outra coisa!
foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo santo
dia, afora que de três em três agora se confessava. Dera em carola
― se dizia ― só constante na salvação de sua alma. Ela sempre
de preto, conforme os costumes, mulher que não ria ― esse lenho
seco. E, estando na igreja, não tirava os olhos do padre.
O
padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia idade, meio
gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem
desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha! ele
relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida,
que governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome
de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não
vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação ― com a
ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o
mundo achava trivial. Os filhos, bem-criados e bonitinhos, eram os
meninos da Maria do Padre. E em tudo mais o Padre Ponte era um
vigário de mão cheia, cumpridor e caridoso, pregando com muita
virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite,
para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos
santos-óleos.
Mas
o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a
Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três dias
necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre Ponte
visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido naquele
sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por ferro
de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das primeiras
vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela, terrível, no
confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava de lá, de olhos
baixos, com tanta humildade serena, que uma santa padecedora mais
parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu, bem, que Padre
Ponte todas as vezes fazia uma cara de verdadeiro sofrimento e temor,
no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema. Ia, porque confissão
clamada não se nega. Mas ia a poder de ser padre, e não de ser só
homem, como nós.
E
daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre
Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De
dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dôres, e em fim
encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena.
Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para
o São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na
igreja, nem por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado
que viúva soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém
não alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava.
Por
fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e chegaram no
arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, pra
fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com
fé braba. De manhã à noite, durado de três dias, eles estavam
sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e
aconselhando, com entusiasmados exemplos que enfileiravam o povo no
bom rumo. A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde
como virtude; e com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum
encoberto poder, conforme o senhor vai ver, por minha continuação.
Só que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.
Aconteceu
foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no seguinte, que dava
em domingo, ia ser festa de comunhão geral e glória santa. E foi de
noite, acabada a benção, quando um dos missionários subiu no
púlpito, para a prédica, e tascava de começar de joelhos, rezando
a salve-rainha. E foi nessa hora que a Maria Mutema entrou. Fazia
tanto tempo que não comparecia em igreja; por que foi, então, que
deu de vir?
Mas
aquele missionário governava com luzes outras. Maria Mutema veio
entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto! porque a
salve-rainha é oração que não se pode partir em meio ― em desde
que de joelhos começada, tem de ter suas palavras seguidas até ao
tresfim. Mas o missionário retomou a fraseação, só que com a voz
demudada, isso se viu. E, mal no amém, ele se levantou, cresceu na
beira do púlpito, em brasa vermelho, debruçado, deu um sôco no pau
do peitoril, parecia um touro tigre. E foi de grito!
― A
pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A pra fora, já, já,
essa mulher!
Todos,
no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema.
― Que
saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e da Cruz! Se ainda
for capaz de um arrependimento, então pode ir me esperar, agora
mesmo, que vou ouvir sua confissão... Mas confissão esta ela tem de
fazer é na porta do cemitério! Que vá me esperar lá, na porta do
cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!...
Isso
o missionário comandou: e os que estavam dentro da igreja sentiram o
rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em fundura e sumidade.
Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e meninos, outras despencavam
no chão, ninguém ficou sem se ajoelhar. Muitos, muitos, daquela
gente, choravam.
E
Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, deu um gemido de
lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu
perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus
baixasse nela, em dôres de urgência, antes de qualquer hora de
nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de
perdão de todos também, se confessava. Confissão edital,
consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia,
público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das
coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça
monstra, tinha matado o marido ― e que ela era cobra, bicho imundo,
sobrado do pôdre de todos os estercos. Que tinha matado o marido,
aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa
nenhuma ―; por que, nem sabia. Matou ― enquanto ele estava
dormindo ― assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um
funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O marido passou, lá
o que diz ― do oco para o ocão ― do sono para a morte, e lesão
no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E,
depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão,
amargável mentiu, no confessionário! disse, afirmou que tinha
matado o marido por causa dele, Padre Ponte ― porque dele gostava
em fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era
mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa
zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava
de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de modo
nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. Todo o tempo ela
vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava ― edificar o
mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em
desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava
o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as mãos,
depois as mãos no alto ela levantava.
Mas
o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, louvado
seja! ― e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as
mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, porque
a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para os
ouvintes senhores homens, como conforme.
E
no outro dia, domingo do Senhor, o arraial ilustrado com arcos e
cordas de bandeirolas, e espôco de festa, foguetes muitos, missa
cantada, procissão ― mas todo o mundo só pensava naquilo. Maria
Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-escola, não comia,
não sossegava, sempre de joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão
e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar
bordoadas. Que ela ― exclamava ― tudo isso merecia. No
meio-tempo, desenterraram da cova os ossos do marido! se conta que a
gente sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro,
até tinia! Tanto por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São
João Leão ainda por mais de semana, os missionários tinham ido
embora. Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para
culpa e júri, na cadeia de Arassuaí. Só que, nos dias em que ainda
esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e
juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do
Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bem-estar e
edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou,
em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava
ficando santa.
E
foi isso que Jõe Bexiguento a mim contou, e que de certo modo me
divagasse.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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