sábado, 12 de março de 2022

O mal-entendido [baseado em história real]

O casamento estava marcado para as 20h. Na igreja em frente a uma praça dos Jardins, indicaram, numa travessa da Faria Lima.
Quem da minha família não conhece a São José? Já fui a casamentos, missas de sétimo dia e batizados realizados nela. Conheço até o altar e a sacristia — já fui padrinho.
Desenhei com antecedência o caminho, já que a cerimônia cairia numa sexta-feira. Sei dos atalhos do bairro. Se saísse meia hora antes, ok. Rua Groenlândia, depois a Polônia. Cruzaria as mansões do Jardim Europa. Caminho bucólico e relativamente livre.
Não sou muito fã de casamentos em igreja. Nada de me acusar de neurótico intolerante. Conheço muitos que também não são. Acho uma festa tensa, excessivamente protocolar. A cerimônia geralmente marcada na hora do jantar se torna um obstáculo para o que o estômago clama: o bufê.
Curiosidade: geralmente, casamentos são às noites, missas de sétimo dia, às manhãs. Confesso que as de sétimo dia mobilizam mais a alma, mexem com o passado de todos, levam a reflexões sobre amizade, vida, amor ao próximo.
Um velório ou missa de sétimo dia atordoa. Esperamos o tempo desarmar os dilemas que suscita. Os convidados, emocionados, solidários, fazem promessas que não serão cumpridas e juras de amores, marcam compromissos, antes que passemos “dessa para uma melhor”.
A vida é frágil e uma só? A linha da morte, tênue. Até dias atrás, ele estava entre nós. Saudades.
Desculpe. Não estou concentrado. Desconsidere. Onde já se viu preferir velórios a casamentos?
A maioria das mulheres chora em casamentos. A cerimônia deve causar um terremoto na falha geológica em que placas de desejo e fantasia se chocam.
Lembra uma gincana: elaborar lista de convidados, número que tem que ser redondo e preciso, o que gera discórdia familiar; convite, confecção da letra, escolha dos envelopes, entregá-los em mãos; decidir igreja, marcar juiz; alianças; curso para noivos, convocar padrinhos; preparar figurino, cabelo, arranjos, escolher músicas, depois, salão de festa, cardápio, bebidas, mesas de doce e bem-casados, banda, DJs; tirar fotos, vídeo; listas de presentes; aluguel de carro, primeira noite, lua de mel, e, a produção mais complexa, na riqueza e na pobreza, amar e honrar, até que a morte os separe!
Eu não choro em casamentos. Fico feliz em saber que não sou eu quem passou e pagou por tudo aquilo.
O que simboliza a cerimônia do casamento afinal? No passado, representava a realização de um contrato, a união de forças (famílias, burgos, reinos), através da transferência de um ventre.
No mundo dominado pelos homens, que trancavam as filhas em casa, impediam de estudar, trabalhar e decidiam com quem se casariam, a festa parecia uma concessão: uma noite apenas para a sua menina se sentir princesa e dona do nariz. Depois, era levada para a casa de outro homem, para continuar a sua saga de submissão. Nunca entendi por que se estabeleceu que o pai da noiva era quem pagava as despesas, se era ele quem cedia os “direitos de posse”.
Pobre da minha mãe, que teve quatro filhas mulheres.
Às 16h, eu estava com meu único sapato preto, única camisa branca, a gravata já enlaçada e único terno, que tive que comprar, porque meus amigos têm mania de me chamar para padrinho, convite que me honra, papel que desempenho com correção, mas que me aflige, já que não sei dar nó em gravatas. Estava pronto desde as 16h, porque quem sabe dar, larga neste horário.
Eu não conhecia a família dos noivos, Regina e Rodrigo. Mas tinha certeza de que não eram nissei ou sansei. E às 20h a igreja estava apinhada deles. Informaram que o casamento de Regina e Rodrigo era o próximo, às 21h, apesar de o convite indicar 20h.
Acabei assistindo ao casamento multiétnico. Observei santos da igreja. Por que alguns vêm sem nome? Conversei com o contrabaixista, que contou que fica sabendo das músicas na hora, e que o repertório é limitado.
Do lado de fora, chegavam convivas. Não os reconheci. Um ônibus fretado estacionou, e desceu uma turma animada. Fantástica ideia. Pode-se beber à vontade depois.
Acabou o casamento das 20h. Saíram noivos, parentes e convivas cruzando com parentes, convivas e noivos do das 21h. Crianças se perderam. Formou-se um bolo na praça. O pipoqueiro fez a festa. Carros de uns atravancaram os de outros.
Mudaram os arranjos, flores, velas? Que nada. Rodrigo e Regina se casaram com o perfume, astral e luzes do casal anterior. Econômicos...
Já viu dois casamentos seguidos? O início do ritual é idêntico. Amigos da noiva de um lado, do noivo do outro. Entram os padrinhos, que se postam no altar. A banda toca uma música leve, provavelmente a que tocou quando os noivos se conheceram. Estaciona um carro estiloso. De repente, trombetas soam, como se uma rainha entrasse no recinto. Começa a Marcha Nupcial de Mendelssohn ou de Wagner. A noiva cruza a nave.
Pensei que estava na hora de o protocolo mudar. Imaginei casamentos temáticos, com elementos da cultura de massa. Guerra nas Estrelas, por exemplo. O padre de Darth Vader abençoaria o casal com o sabre de luz. Haveria robozinhos R2-D2 e C-3PO como damas de companhia. Gelo seco e luzes dariam um clima espacial. Os convidados viriam fantasiados. O noivo, de Luke Skywalker. A noiva, de Princesa Leia, entraria sob a trilha de John Williams.
Outros temas? Velho Oeste (o ápice da cerimônia seria um duelo entre o pai e o noivo, no meio da igreja, com implicações freudianas), Homem das Cavernas (o noivo levaria a noiva embora, depois de dar uma bordunada na cabeça do sogro, arrastando-a pelos cabelos, enquanto os convidados grunhiriam “pega-pega-pega!”).
Ou quem sabe um mais atual: Tropa de Elite. Os convivas, com bonés e ginga, simulariam pertencer ao tráfico. Os padrinhos, ao Bope. A noiva entraria de cachorra dançando um funk. O noivo, de Capitão Nascimento, não pediria a sua mão, mas para ela sair.
21h30. Entrou a noiva Regina. Tive que sair correndo da igreja, cruzando a nave. Pois descobri que não era a minha Regina. Eu estava no casamento de outro Rodrigo.
O meu ocorreu, sim, pontualmente às 20h. Só que na Perpétuo Socorro, igreja que eu nem sabia que existia, em frente a outra pracinha dos Jardins, numa travessa da Faria Lima. Juro. Já aconteceu com você?

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola

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