sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O presente

Eu estava doente. Diziam que eu sofria do fígado. Deitado, o estômago enjoado. Aí chegou o correio trazendo um pacote para mim, do Rio de Janeiro. Minha mãe leu o nome do remetente. O pacote vinha de uma mulher cujo nome eu nunca ouvira: Elisinha. Não sei se era alta ou baixa, gorda ou magra. Minha mãe explicou: era uma parenta. Não sei como ela soube que o meu aniversário estava chegando. Sem me conhecer, teve vontade de me dar um presente. Eu nunca havia recebido nada pelo correio. Foi uma importância. Dentro do pacote havia dois presentes. O primeiro era um livro de capa dura, Alice no País das Maravilhas. Li mas não gostei. O mundo doido da tal Alice embrulhou o meu estômago ainda mais. O segundo presente era uma caixa. Quando a abri não entendi. Ninguém entendeu. Uma infinidade de pequenas peças de papelão soltas, coloridas. Meu pai logo decifrou o enigma. As peças deveriam ser ajuntadas para formar um quadro. O quadro estava na tampa da caixa. Era a oficina de um velho, vários relógios na parede, um peixinho num aquário, um gato, um grilo e um boneco de madeira. Foi a primeira vez que soube da estória do Pinóquio. De noite meu pai e meu irmão Ivan espalharam as peças sobre uma mesa e se puseram a montar o quebra-cabeça. Eu, doente, ficava de fora, olhando. Mas ficava fascinado ao ver as pequenas peças formando desenhos à medida que eram ajuntadas. Apaixonei-me por aquele quebra-cabeça. Apaixonei-me por todos os quebra-cabeças. Ainda hoje, quando quero me desligar do mundo, ponho-me a armar quebra-cabeças. Esqueço-me de tudo. Agora mesmo acabei de montar um, pequeno, só quinhentas peças. Houve só um quebra-cabeça que me derrotou. Era um dos desenhos de Escher, mil peças. Desisti. Dei-o a uma instituição que cuida de crianças deficientes. De vez em quando aparece entre os deficientes pessoas com habilidades extraordinárias. Alguns têm uma memória fabulosa. São capazes de decorar um livro de quinhentas páginas com uma só leitura — muito embora não entendam o que decoraram. Outros têm a capacidade sobre-humana de montar os quebra-cabeças mais complicados. Parece que eles, por mecanismos que não entendemos, percebem quase instantaneamente a forma das peças espalhadas sobre a mesa. O deficiente armou o quebra-cabeças que me derrotou. Só fico triste quando vejo quebra-cabeças formados colados num compensado e transformados em quadros. O quebra-cabeças foi assassinado. Ninguém poderá ter mais o prazer de montá-lo. O quadro é a sua urna funerária.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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