sábado, 8 de janeiro de 2022

Inércia

Existem muitas formas de se combater a inércia existencial que adoece um indivíduo na metade aproximada da vida, estágio conhecido popularmente como meia-idade. Mudar de profissão? Poucos ousam, pois o risco é grande numa economia de alto risco (de altos e baixos) tal qual a globalizada.
Mudar de cidade, de casa, de família e de ciclo ajudam, mas o tédio pode voltar em maior proporção depois que a novidade se dissipa. Mudar de barbeiro? A marca da maionese, o sapato, a padoca e o carro? Não ajuda, já que não se mudou nada profundamente. Mudar de time? Ousado demais. A mais radical delas. Melhor evitar.
Mulheres mudam o cabelo, o nariz, o peito e a barriga já há décadas. Homens começam a se perguntar se não é um caminho: uma forma de reacender o interesse pela vaidade.
O problema: algumas mulheres entram na clínica com rugas e saem com a orelha engolida e a testa desaparecida. Homens agora se arriscam. A maioria apenas tinge o cabelo, para espantar o grisalhar que aparece como um alerta.
Vestir-se como um garotão não funciona. Ou você acha apropriado um sujeito de bom senso e na fila do cardiologista usar uma calça larga caída, com a cueca aparecendo na cintura? Mesmo que a cueca fosse Calvin Klein. Boné ainda vai. Esconde a calvície, protege o tiozinho do sereno e dá um ar jovial. Mas se bater um vento, a realidade revelada choca. Perigoso. A melhor e mais barata maneira de rejuvenescer é alterar aquilo que ninguém vê: o cérebro.
Marcondes acordou diferente um dia depois da sua festa de 45 anos. Abriu os olhos e imaginou no teto o gráfico em que a curva das vontades chegara ao topo e decairia com o tempo. Agora, é amadurecer até a morte. Ficou na cama mais tempo do que o normal, imobilizado pela constatação.
Automaticamente, caminhou de costas até o banheiro, refazendo os passos que dera na noite anterior, apoiando com cuidado os pés nas pegadas já apagadas da sua ida à cama. Escovou os dentes da direita pra esquerda, invertendo a escovação habitual.
Caminhou de costas até a copa, para o seu café da manhã. Denise, a mulher, saíra antes. Foi a primeira vez que Diogo e Maria, o casal de filhos gêmeos, pararam de brigar pelo jornal. Surpreenderam-se depois que o pai abriu a geladeira, sentou-se na mesa com o iogurte e disse: “Boa noite, durmam com os anjinhos.”
Marcondes começou a ler o jornal de trás para a frente. Lia os artigos do final para o começo. Só depois lia a manchete e exclamava: “Ah, claro...” Evidentemente, Diogo e Maria o imitaram, procurando desvendar a incógnita escondida naquele gesto, e porque acharam que o pai lhes dava uma lição de vida.
No quarto, ele vestira a roupa que usara na noite anterior. E saiu de casa. De costas. Entrou no carro e saiu de ré da garagem. Foi de ré até o trabalho, causando um transtorno pelas ruas do bairro. Ao entrar no elevador, disse: “Obrigado.” O ascensorista apertou o andar num gesto mecânico e só depois percebeu que seu conhecido passageiro entrara de costas. No andar do escritório, Marcondes saiu e disse: “Bom dia. Seu time, hein?”
Na mesa, ele atendia o telefone com um “a gente se fala”. Refez as tarefas do dia anterior. Almoçou o mesmo prato no mesmo quilo do dia anterior. E no dia seguinte, revisitou os mesmos lugares em que esteve no dia anterior ao anterior. E três dias depois do início da sua extravagância, repetiu tudo o que fizera três dias antes, só que na ordem inversa.
Todos os dias, refez o caminho de volta da sua vida. Só que de táxi, pois cassaram a sua carteira de motorista, depois de multas por andar de ré em vias expressas e movimentadas. Revisitou lugares, reencontrou pessoas, releu livros, como se o tempo abrisse uma pista num espelho, e Marcondes caminhasse nela. De costas.
Muitos problemas surgiram devido à rotina espalhafatosa. Quando Denise chegava com as compras, ele enfiava tudo num carrinho, voltava ao supermercado, colocava na esteira e revendia os produtos. Com o dinheiro na mão, ia até um caixa eletrônico e o devolvia para a máquina, enfiando as cédulas de uma em uma, até a mesma engolir todo o montante.
Declarado incapaz, Marcondes acabou aposentado pelo escritório, abandonado pela mulher e pelos gêmeos, que até hoje leem o jornal de trás para a frente. Ele nem se importou, pois quis renamorar todas as garotas com quem saiu antes de se casar. Não eram mais garotas, a maioria estava casada, mas receberam com carinho aquele rapaz de antigamente que aparecia de surpresa com um maço de flores, uma caixa de bombom, um colete de lã, um cabelo pastinha e um romantismo démodé, porém agradável.
Anette, viúva, até o renamorou. Mas não aguentou o pique de sair todas as noites para dançar, assistir a filmes nos antigos e gloriosos cinemas do centro, que agora só exibem pornôs.
Aos 65 anos, Marcondes surpreendeu e fez vestibular. Deu até entrevistas como personagem exótico. Passou a frequentar a mesma faculdade que cursou aos 20 anos. Recebeu o mesmo diploma.
Aos 80, sentava-se no banco de madeira da escola estadual que frequentou no ginásio, sem perceber que a mesma virara uma repartição pública indefinida, dirigida por funcionários fantasmas. Aos 85, cantava no coral infantil no mesmo coreto da praça preservada pelo patrimônio histórico. Coral de uma voz e dois bêbados. Aos 90 anos, instalou-se num quarto na maternidade em que nasceu, prédio já abandonado há tempos, esqueleto ocupado por um grupo sem-teto radical. E lá ficou até morrer.
Marcondes é considerado um homem paredão: o bate e volta. No meio do caminho, resolveu voltar. Viveu duas vezes a mesma vida. Recusou-se a envelhecer. Aprendeu duas vezes as mesmas lições. Emocionou-se duas vezes pela mesma experiência. Foi a forma mais original de alguém combater a inércia existencial. Original e covarde.

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola

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