Oralidade
Ao autor da presente introdução falta
convivência com o povo do interior brasileiro e, especialmente, da
região que serve de cenário à maioria dessas estórias para que
possa tentar uma distinção da contribuição popular lato sensu
e da nitidamente regional; por isso adota o termo acima, que lhe
parece determinar com bastante exatidão uma das principais
coordenadas da linguagem rosiana.
Suas páginas porejam modismos e fórmulas
que estamos habituados a ouvir na boca de pessoas do povo e que, em
seu frusto vigor, dão à fala popular sabor e energia deliciosos:
“Nosso pai nada não dizia.”; “Do que eu mesmo me alembro”;
“Nossa casa, no tempo, era mais próxima do rio, obra de nem quarto
de légua”; “perto e longe da sua família dele”; “avisado
que nem Noé”; “A gente, firmes, sem mover o passo”.
Os exemplos poderiam ser multiplicados. É
precisamente o formigar de tais rodeios que dá a leitores menos
avisados a ideia de que o autor se propõe a mera reprodução da
linguagem popular. Com essa ideia metida na cabeça, logo vão
implicar com o primeiro neologismo e apontar em triunfo aquele
“destom” como exemplo de insucesso.
É desconhecer a própria essência dessa
arte tão provocadoramente original. A predileção do autor por
fórmulas populares de uso geral não o impede de se deleitar com
insólitas locuções individuais nem de inventar outras que,
golpeando em cheio o leitor, lhe possam inculcar uma percepção
nova.
Tem toda a aparência popular e regional
o uso do artigo definido à frente dos adjetivos indefinidos, adotado
pelo autor — como as demais práticas de estilo oral — mesmo em
trechos em que ele fala por conta própria: “As muitas pessoas”;
“o parente nenhum”; “a alguma alegria”; “o certo solerte
contentamento”; “a alguma recomendação”; “pelas certas
pessoas”; “a tanta importância”; “as todas manhãs”; “a
muita criatura”. Essa praxe paradoxal, oriunda talvez do desejo de
aumentar a massa sonora e o peso da locução, nota-se também no
caso de expressões onde normalmente a indefinição se patenteia
pela ausência de determinantes: “iam dar na gente a tremenda
vaia!”; “O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não
andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro”.
O leitor citadino, especialmente carioca,
encontrará o mesmo sabor regional no uso do subjuntivo com valor de
condicional — “Nem olhasse mais a paisagem?”; “nem fosse
possível”; “constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado
a explicação” — ou de indicativo, com matiz dubitativo: “só
ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele [brejão]”; “Por
certo esse Herculinão Socó desmerecesse a mínima simpatia humana”;
“e tão apartado em si se conduzia ele (...) que jamais quase a
referisse pelo nome”.
Observando a fala de pessoas de poucas
letras, ou de todo não alfabetizadas, podemos notar quão
frequentemente elas deixam a frase inacabada, como que suspensa,
completando o sentido com o silêncio da pausa. Em Guimarães Rosa, o
vezo, de tão frequente, ganha foros de categoria sintática:
“queriam-lhe como quem”; “No que num engano.”; “Sabiam o
até-que-ponto”; “Aquilo era quando as onças.”; “O que foi
quando subitamente”; “Brejeirinha de alegria ante todas, feliz
como se, se, se; menina só ave.”; “Esse moço, pois, para ele
sendo igual matéria o futuro que o passado?”. Dentro do contexto,
todas essas frases — e muitas semelhantes — palpitam com o
frescor da emoção. Um jovem crítico, Roberto Schwarz, em sua
percuciente análise da linguagem de Guimarães Rosa, chega a ver em
tais sentenças inacabadas a chave de toda a expressão do autor:
“Podemos afirmar mesmo, dado encontrarmos frases irredutíveis ao
esquema comum, serem estas as que devem orientar o nosso modo de ler,
por realizarem mais radicalmente a dicção do livro. Através de
umas tantas orações sem fio gramatical definível, fica instaurado
um universo linguístico em que mesmo as proposições de lógica
perfeita passam a pedir uma leitura diversa (...).” Especialmente o
verbo de cópula ganha força em ser omitido quando substituído por
interrupção do fluxo sonoro: “Se homens, meninos, cavalos e bois
— assim insetos?”; “O estilo espavorido.”; “Atordoados,
pois.”; “A gente, nada. Ali, formados, soldados mesmos, mudando
de cor, de amargor.”; “O pasmatório.” E, em nível literário:
“Tia Liduína, que já fina música e imagem.”
Caracteriza ainda o modo de falar das
pessoas simples certo rebuscamento, a adoção de formas da linguagem
escrita consideradas elegantes e não inteiramente assimiladas. É o
que explica o aparecimento do gerúndio em orações relativas que
depois o sujeito falante não sabe como acabar: “Seo Fifino (...)
noticiou: que tendo chegado certo sujeito, um positivo, com carta.”;
“Seus sabedores informavam: que a marca sendo de grande
fazendeiro.” O particípio passado pode também assumir esse efeito
desorganizador do gerúndio: “Vim ver quem. Aquele homem que
chegado.”; “acomodar os hóspedes, que esperados”. Por
expressivo, o modismo é adotado pelo próprio narrador: “Dava para
se sentir o peso da [arma] de fogo, no cinturão, que usado baixo”.
Efeitos enérgicos são tirados de outras
irregularidades sintáticas, igualmente característicos do estilo
oral: da regência imprópria (“E prometia-lhe o Tio as muitas
coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear”); da concordância
pelo sentido ( “e a gente fica quase presos, alojados na cozinha”)
e deste anacoluto expressivo que abre a undécima estória: “O
espelho, são muitos”.
Sonoridade
Essas citações devem ter feito entrever
uma das qualidades paradoxais do estilo de Guimarães Rosa: suas
páginas exigem leitura atenta e meditada, e, ao mesmo tempo, podem
ser lidas em voz alta ou, pelo menos, com a colaboração
ininterrupta da imaginação auditiva. Só assim poderão ser
apreciados in totum e valorizados seus esforços
originalíssimos de “transposição total para o plano auditivo de
uma representação puramente visual” (Oswaldino Marques).
Há frases do nosso autor, precisamente
das mais carregadas de significação, que exigem notação musical:
“Infância é coisa, coisa?”; “Porque eu desconheci meus Pais —
eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los,
eu; eu?”
A aliteração serve-lhe de subsídio
pitoresco ou acompanhamento musical, marcadora de ritmo ou de
monotonia, sinal de gravidade ou de graça: “Miúdo, moído.”;
“aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano”;
“leigos, ledos, lépidos”; “Desconto (...) o em que me tive na
mocidade: desmandos, desordens e despraças.”; “Podia também ser
de outra essência — a mandada, manchada, malfadada.”; “conforme
confere e confirmava”. Em suas acrobacias verbais ressurgem as
figuras da velha retórica: a homofonia: “ferramos fera briga”; o
homoteleuto: “não conseguindo juntar o prestígio ao fastígio”;
o poliptoto: “Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho
direito o que houve.”; a figura etymologica: “as
figurantes figuras, mas personagens personificantes”.
A rima sentenciosa é um adjutório
caracterizador (em “Luas-de-mel”): “Eu ponho a mesa e pago a
despesa.”; “cachorro, gato e espalhafato”; “Só em paz, com
Deus, sossegado. Sensato, sincero e honrado.”; “Herói é no que
dói!”.
Usa com o mesmo intento, ou como simples
intermezzo lúdico, palavras pomposas e grandiloquentes, que
ganham graça pelo emprego pernóstico: “Só vivo no supracitado.”;
“os Noivos (...) satisfatórios”; “aquele senhor (...)
provisoriamente impoluto”. Há muitos outros exemplos, sobretudo ao
longo de “Partida do audaz navegante”, onde o autor confirma
implicitamente a ampla contribuição da linguagem infantil para seus
processos de inovação mais ousados.
Com patente alegria sensual ele deixa
arrebentar-se pelo batucar das onomatopéias: “Aí, o povaréu fez
vêvêvê”; “o a-tchim-pum-pum dos foguetes”; “trupitar”
de cavalos; “catastrapes!”; “chiquetichique”, todos exemplos
encontráveis em “— Tarantão, meu patrão”, onde a reprodução
imitativa começa no próprio título.
O prolongamento das palavras por meio de
sufixos altissonantes — furibundância, circunspectância,
esplendição, blasfemífero, ardilidade — ou pela ousada
repetição de sílabas — sussussurrar, mumumudos, nesse
interintintim — é praticado com intuito de intensificação
semântica.
Assinale-se mais uma fonte de sonoridades
sugestivas e classificadoras: os expressivos nomes próprios com que
Guimarães Rosa gosta de brindar-nos, enfileirando-os às vezes em
saborosas enumerações rabelaisianas. Nenhum outro autor nosso
armazena tantos apelidos, alcunhas, epítetos, corruptelas de nomes e
sobrenomes pitorescos e pedantes. Só em Primeiras estórias
encontramos os quatro irmãos Dagobé: Damastor, Doricão, Dismundo e
Derval, além de Tãozão, Mão-na-Lata e Zé Centeralfe. E ainda, a
sinistra tríade formada pela Mula-Marmela, Mumbungo e Retrupé; e
Nhinhinha e a Nhatiaga; e Vagalume, de seu verdadeiro nome (!) João
Dosmeuspés Felizardo: e Curucutu, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque,
Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Gorro-Pintado... todo um
catálogo bem brasileiro de extravagância denominativa.
Paulo Rónai, in Os vastos espaços (Prefácio de Primeiras estórias, de Guimarães Rosa)
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