sábado, 25 de dezembro de 2021

Fama

Ninguém se espante com o diálogo que mantive com um bebê de quinze dias de existência. Hoje, a comunicação não conhece fronteiras espaciais ou etárias. O bebê não fala o português de Portugal nem o português brasileiro, ensinado pelo saudoso professor Stanislaw Ponte Preta. Mas fala a seu modo, desde que se saiba interrogá-lo, e eu, não é por me gabar, tenho meus macetes. Perguntei-lhe de saída:
Então, satisfeita de vir ao mundo?
Respondeu-me com rabugem, em termos que traduzirei assim:
Como posso estar satisfeita, se ainda bem não cheguei a este lugar, já me televisionaram e estão me entrevistando?
É a era tecnológico-aldeiglobal-consumística, minha querida. Desde o primeiro minuto de vida extrauterina você participa da sociedade eletrônico-difusoro-cósmica ilimitada.
É, estou vendo mas não acho graça nenhuma.
Não é para achar graça nem desgraça, é para se integrar, entende? Você tem de aderir ao processo. O processo é irreversível. Melhor você não dar uma de contestadora, e entrar na jogada.
Mas eu nem tive tempo de contestar, me botaram diante das câmeras, fechei os olhos para não me ofuscar com aquelas luzes, chorei em sinal de protesto, riram de mim, e agora, pelo que vejo, estou em todas.
De fato. Seu índice de publicidade é dos mais altos. Em duas semanas você varou o Brasil, fez concorrência a Elizabeth Taylor, aos terroristas palestinos e aos não palestinos, governos que caem, governos que sobem, técnicas de exorcismo…
E daí? Pensa que o meu Ibope me dá prazer?
Ibope não dá prazer. Dá dividendos. Você tem o futuro garantido, se for sempre dócil às exigências do sistema. Não deve bobear. Esteja sempre perto de uma objetiva, um gravador, uma passarela.
Preferia viver a vida, com a sensação de ter uma vida realmente minha.
Quem tem isso hoje em dia, meus-encantos? Só os loucos, isso mesmo, apenas certos loucos, não marcados pela psicose de governar o mundo. Loucos mansos, vamos dizer assim. São raros, a maioria é agitada, e não só recebe a influência da comunicação delirante, como, por sua vez, influi sobre esta, aumentando-lhe o delírio. De sorte que é bom você renunciar ao ideal individualista e anacrônico. Vida particular da gente já era. Agora vivemos a vida dos outros, em bloco, ou melhor, a de ninguém.
De qualquer maneira, os direitos da criança… O direito de mamar sem virar manchete, de fazer cocozinho à vontade sem ser objeto de curiosidade geral, como se eu pudesse fazê-lo de pérolas. Isso não está mais em vigor?
Depende. Há criança e criança. Umas nascem destinadas à obscuridade total e permanente, senão mesmo a coisa mais negativa, que é não viver. Nascem para não conhecer a vida. Em pouco tempo voltam para o outro lado, onde, ao que se sabe, ainda há o aproveitamento industrial do ser. Você até que é dos bebês privilegiados. Centenas de milhares, ou milhões, de espectadores debruçam-se diante dos seus cueiros, pela circunstância feliz de que você é extensão da glória de sua mãezinha.
Vou pedir a ela para me esconder.
Ela não pode fazer isso. Compreenda o seu papel, ó flor reclamante. Não se pode fazer nada nesta situação, a não ser exigir que as fotos saiam caprichadas, mesmo porque se não saírem será preciso tirar outras. Sua imagem é mais importante do que você. E você não se pertence; você é a sua imagem multiplicada, em cor e som. Cresça como puder, mas apareça. Aparecer é ser, em nosso tempo. Bem, vou me despedir, já estão chegando outras equipes que naturalmente vão pedir a você que estreie na próxima novela das vinte e duas horas. Trate de se preparar para tudo. Sucesso, hem? E tchauzinho, mon amour de bebê.

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

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