sábado, 25 de dezembro de 2021

Dona Clotilde

Eu estava no primeiro ano do grupo. Da nossa sala ouvíamos a professora na sala ao lado a berrar com voz fina esganiçada: “Silêncio! Silêncio! O giz está esperando!”. Eu pensava: “Será que ela acha que a meninada tem medo do giz?”. Na nossa sala não havia gritos. Era a voz mansa da dona Clotilde, mulher bonita de uns 25 anos. Pois ela fazia o seguinte: assentava-se numa cadeira bem no meio da sala, num lugar onde todos a viam e começava a desabotoar a blusa, um botão, dois botões, três botões, blusa aberta até o estômago, a meninada em suspense, e aí ela enfiava a mão dentro dela e puxava para fora um seio lindo, liso, branco, aquele mamilo atrevido... Lembro-me da hidrografia azul das finíssimas veias do seu seio! E nós, meninos, de boca aberta... Mas isso durava não mais que cinco segundos, porque ela logo pegava o nenezinho e o punha para mamar. E lá ficávamos nós, sentindo coisas estranhas que não entendíamos: o corpo sabe coisas que a cabeça não sabe. Terminada a aula, os meninos faziam fila junto à dona Clotilde, pedindo para carregar a pasta. Mas o objeto do desejo, na realidade, era o seio. Por um artifício poético, uma metonímia, os meninos elegiam a pasta como representante do seio. Quem carregava a pasta estava, simbolicamente, de posse do seio da dona Clotilde. “Quem não tem seio carrega pasta...”
Depois de adulto aprendi a lição e a contei aos meus leitores professores: por amor ou admiração a um professor, um aluno é capaz de carregar as pastas mais pesadas... Melanie Klein, mestra de psicanálise, concordaria: é preciso ser um seio bom (pois há seios maus, cheios de fel...).
O pai da dona Clotilde era dono de um botequim onde se vendia um doce chamado mata-fome, de que nunca gostei. Mas eu comprava um mata-fome e ia para casa chupando bem devagarzinho...
Isso aconteceu no ano de 1941. Contei essa estória num congresso de professores, em Cambuquira. Aí veio a surpresa. Eles me disseram: “Dona Clotilde está viva, 92 anos de idade, e aos 90 defendeu tese de mestrado sobre ‘A ironia em Eça de Queiroz’”. Fui visitar a dona Clotilde. Foi um suave reencontro amoroso…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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