Há um momento na vida das crianças em
que o que elas mais desejam é ficar livres dos olhos dos adultos.
Por isso procuram a solidão. Para os adolescentes e os adultos, a
solidão é o espaço do abandono. Estar sozinho em casa, numa noite
de sábado, é estar abandonado, esquecido por todos. Para mim era
diferente. A solidão era o espaço da minha liberdade. Na solidão
eu podia entregar-me às minhas fantasias, sem que ninguém me
perturbasse.
Bachelard foi um dos poucos a perceber
que as crianças gostam da solidão. “A solidão da criança é
mais secreta que a solidão do adulto. É no último quartel da vida
que compreendemos as solidões do primeiro quartel, quando as
solidões da idade provecta repercutem sobre as solidões esquecidas
da infância.” Se os pais, psicólogos e professores, na ânsia de
educar bem, deixassem de lado por um momento os saberes científicos
da psicologia e da pedagogia e se dedicassem a uma leitura vagarosa
do capítulo “Os devaneios voltados para a infância”, é
certo que ficariam mais próximos das crianças... (Gaston Bachelard,
A poética do devaneio, São Paulo, Martins Fontes, 1988, p.
102).
São dois os espaços da solidão
infantil. Primeiro, os pequenos espaços, simbolizados pelo sonho de
uma casinha no alto de uma árvore. Depois, os grandes espaços,
simbolizados pela criança correndo sozinha pela campina.
No sonho da casinha no alto de uma árvore
os adultos jamais entram. Nunca tive uma casinha no alto de uma
árvore. Mas tive muitos “altos de árvore” que eram a minha
casinha. No alto de uma jabuticabeira ninguém me achava. E havia
também, no quintal, um forno de barro na forma de iglu. Eu me
esgueirava pela entrada apertada e ficava lá dentro. Lá dentro não
havia nada que pudesse me interessar. Havia apenas o sentimento de
que eu me encontrava num lugar onde os grandes não entrariam.
Lembro-me da menininha que não tinha um único lugar que fosse só
seu no pequeno apartamento escuro em que vivia. Todos os espaços
eram vigiados pelos olhos implacáveis da mãe. Aí ela descobriu,
num canto do corredor, um taco solto. Ela transformou o espaço entre
o cimento e o taco no seu refúgio secreto. Ali guardava os seus
tesouros.
Guimarães Rosa amava a solidão pequena.
Só se sentiu feliz quando conseguiu uma chave para o seu quarto. Mas
ele amava também a solidão grande, a solidão do sertão. “Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode
torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador... O sertão
está em toda parte...” No sertão mora a solidão forte, sem
cercas, solidão do vazio, do desconhecido. O homem só pode contar
com a sua força. Gritar é inútil. Não há quem responda. Minha
solidão grande, o pomar com suas árvores e sombras, os campos de
capim-gordura floridos no horizonte, os pastos, os matos, os riachos,
a mina borbulhante que descobri na casa humilde de um casal de
negros. Ficamos amigos. Eles se alegravam quando eu aparecia. Eu ia
até a mina não para beber água, mas para ver a água saindo da
terra. É uma memória inesquecível. Ainda bem que as professoras
não enchiam o meu tempo com lições de casa. Foi nesse tempo livre
de deveres escolares que explorei a grande solidão.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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