domingo, 12 de dezembro de 2021

A solidão

Há um momento na vida das crianças em que o que elas mais desejam é ficar livres dos olhos dos adultos. Por isso procuram a solidão. Para os adolescentes e os adultos, a solidão é o espaço do abandono. Estar sozinho em casa, numa noite de sábado, é estar abandonado, esquecido por todos. Para mim era diferente. A solidão era o espaço da minha liberdade. Na solidão eu podia entregar-me às minhas fantasias, sem que ninguém me perturbasse.
Bachelard foi um dos poucos a perceber que as crianças gostam da solidão. “A solidão da criança é mais secreta que a solidão do adulto. É no último quartel da vida que compreendemos as solidões do primeiro quartel, quando as solidões da idade provecta repercutem sobre as solidões esquecidas da infância.” Se os pais, psicólogos e professores, na ânsia de educar bem, deixassem de lado por um momento os saberes científicos da psicologia e da pedagogia e se dedicassem a uma leitura vagarosa do capítulo “Os devaneios voltados para a infância”, é certo que ficariam mais próximos das crianças... (Gaston Bachelard, A poética do devaneio, São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 102).
São dois os espaços da solidão infantil. Primeiro, os pequenos espaços, simbolizados pelo sonho de uma casinha no alto de uma árvore. Depois, os grandes espaços, simbolizados pela criança correndo sozinha pela campina.
No sonho da casinha no alto de uma árvore os adultos jamais entram. Nunca tive uma casinha no alto de uma árvore. Mas tive muitos “altos de árvore” que eram a minha casinha. No alto de uma jabuticabeira ninguém me achava. E havia também, no quintal, um forno de barro na forma de iglu. Eu me esgueirava pela entrada apertada e ficava lá dentro. Lá dentro não havia nada que pudesse me interessar. Havia apenas o sentimento de que eu me encontrava num lugar onde os grandes não entrariam. Lembro-me da menininha que não tinha um único lugar que fosse só seu no pequeno apartamento escuro em que vivia. Todos os espaços eram vigiados pelos olhos implacáveis da mãe. Aí ela descobriu, num canto do corredor, um taco solto. Ela transformou o espaço entre o cimento e o taco no seu refúgio secreto. Ali guardava os seus tesouros.
Guimarães Rosa amava a solidão pequena. Só se sentiu feliz quando conseguiu uma chave para o seu quarto. Mas ele amava também a solidão grande, a solidão do sertão. “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador... O sertão está em toda parte...” No sertão mora a solidão forte, sem cercas, solidão do vazio, do desconhecido. O homem só pode contar com a sua força. Gritar é inútil. Não há quem responda. Minha solidão grande, o pomar com suas árvores e sombras, os campos de capim-gordura floridos no horizonte, os pastos, os matos, os riachos, a mina borbulhante que descobri na casa humilde de um casal de negros. Ficamos amigos. Eles se alegravam quando eu aparecia. Eu ia até a mina não para beber água, mas para ver a água saindo da terra. É uma memória inesquecível. Ainda bem que as professoras não enchiam o meu tempo com lições de casa. Foi nesse tempo livre de deveres escolares que explorei a grande solidão.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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