Na sala, a TV ligada transmite a imagem
de um cacique de cabelo longo. O cacique olha para a câmera e diz:
Não sei o que vocês vão fazer com a
minha imagem. Eu não aprovo isso. Vocês mentem. O homem branco não
liga para nós. Eu odeio todos vocês.
Josefa tem uma xícara de café entre as
mãos e um xale nos ombros. Do lado de fora do apartamento, a
tempestade parece falar de um outro mundo, um mundo grandioso, de
ventos cortantes, de folhagens largas se agitando em um diálogo que
se avoluma intraduzível, um mundo que não parece aderir ao tempo
que se impõe entre as paredes do apartamento, sob a luz que emana da
televisão e o desenho do corpo do rapaz que, a seu lado, também tem
uma xícara entre as mãos, os dedos arqueados contra a cerâmica
quente, as unhas roídas. Por um instante, como se adentrasse num
estado de sonho, é como se ela mesma pudesse estar dentro e fora,
como se fizesse parte da chuva que cai com todos os seus ruídos sem
deixar de ser uma mulher sentada ao lado de um homem. Os barulhos do
mundo de fora abafam o som da televisão por um instante, quando na
tela surge outro cacique, Raoni, trazendo a cabeça adornada por um
cocar de penas amarelas, coroa refulgindo ao sol, ou quem sabe o
próprio sol, advertindo que quem é da guerra na guerra morre.
E eu vou matar vocês, diz Raoni com sua
voz de jaguar.
A chuva forte escorre pelas ladeiras do
espigão paulista, trovões e relâmpagos restrugem e iluminam a
noite com tamanha potência que tornam as luzes da metrópole
diminuídas, insignificantes, o rio Xingu ameaçado pela construção
da hidrelétrica e suas barragens parece pulsar para além da TV na
chuva que se estilhaça, violenta, pelo asfalto.
Que tempestade!
É, são as ruas querendo voltar a ser
rio. Outro dia morreu um rapaz afogado, você imagina?
Ah, eu ouvi falar. Lá na Cardoso de
Almeida, não é?
A imagem de alguém morrendo afogado no
meio da rua de uma grande metrópole parece perturbar os dois, e a
conversa morre abafada pela zoada da chuva, e as vozes dos caciques,
ativistas e antropólogos tornam-se de novo inaudíveis. Os corpos
jovens e perfeitos de guerreiros numa luta corporal tomam a tela, os
adornos coloridos em torno das cinturas os metamorfoseiam como que em
jiboias ou jaguares, ou mesmo troncos de árvores que por algum
desvio da natureza pudessem estar simultaneamente plantados e se
movendo uns contra os outros. Uma menina pequena com um colar de
vários fios azuis, que uns diriam azul-real e outros azul cor da
plumagem da arara-canindé, dança no terreiro.
Iñe-e é perscrutada pelo olhar de
Martius. Ele investiga o tom marrom-pálido, isabelino, como diz, da
pele dela, o brilho do cabelo negro, as sobrancelhas finas e
salientes, o repuxado dos olhos. No peito de Iñe-e começam a
despontar seios em dois pequenos brotos. Eles latejam, às vezes,
como se fagulhas a habitassem por baixo da pele. A menina resplandece
sob o sol, contra o verde da paisagem. É vivaz. Um pouco antes, no
terreiro, corria com os companheiros, e nenhum a alcançava. Martius
agora a examina. Com os dedos ergue seu queixo. O contorno da boca é
elegante, uma pequena depressão se insinua logo abaixo dos lábios
inferiores. A menina se incomoda, seu desconforto se traduz nas mãos
que torce nervosamente, nos pés que pesam o peso de uma montanha,
quando tudo o que quer é fugir. Fosse onça, modularia um grunhido
de advertência, um grunhido sibilado, o ar saindo pelas laterais da
boca, as presas se erguendo e se mostrando, inequívocas. O homem lhe
diz alguma coisa, mas ela não entende. Não quer ouvir. Quando ele
se afasta um pouco, Iñe-e recobra os sentidos e corre, indo se
esconder na maloca, entre as pernas da mãe. Martius anda pelo
descampado, observa outras crianças e jovens. É um homem magro e
abatido, curtido de sol e febre, rosto e mãos cobertos de abscessos
das picadas dos insetos, braços feridos por espinhos. Um homem quase
envergado pelo sertão e pela floresta. Iñe-e o detesta.
Josefa se levanta, arruma o xale, olha
pelo vidro da janela o rio que a chuva fez descendo borbulhante
ladeira abaixo. Mais tarde, enquanto a madrugada impõe um ritmo mais
compassado para as águas em queda, e o corpo de Tomás cercado de
sombras e de pequenas claridades se figura como um animal adormecido,
ela rememora lugares do seu passado. Primeiro, a rua de sua infância,
a casa da avó em Belém, os meninos de bicicleta rondando a entrada,
esperando que estivesse desacompanhada para disparar pequenas
obscenidades, se aproximando demais do meio-fio se ela estivesse
desacompanhada no jardim. Um dia dois deles pararam e um perguntara,
em tom jocoso, se ela não queria ser montada por ele, como a
bicicleta, ao que o outro observara que era possível, pois ela já
tinha peitinhos. Não soube de imediato o motivo pelo qual a insônia
remoía aquela memória distante, que ia e voltava entre outras
lembranças desconexas e urgências dos próximos dias, algumas
contas por pagar, decidir se se inscreveria em um programa de
pós-graduação, finalizar um frila. Depois lembrou a discussão que
tivera com um médico em uma emergência em que aguardava atendimento
quando não tinha mais que dezesseis anos. O homem achara de
destratar uma mulher franzina e com a aparência exausta e pobre,
cujo filho estava queimando de febre, porque esta ousara sugerir:
será que é coqueluche, doutor? A tia, que a acompanhava, ficara
mortificada por ela haver pedido que o médico tivesse mais educação
e respeito. De repente identificou nesse episódio aquilo que era
capaz de lhe roubar o sono, o retorno do olhar entre mortificado e
acusatório da tia, que a culpava pelas injúrias dos meninos, por
ela não se refrear diante da autoridade, um olhar que a afirmava ora
como sonsa, ora como estúpida. Do que a culpava mesmo? De ser bugra
demais, se bem lembrava. Aquele sentimento, quando difuso, era um
carrapato inchado de sangue. Mas quando posto a descoberto, murchava.
E foi então que ela conseguiu algum sossego, o que naquela madrugada
avançada se traduziu num sono incapaz de ser reparador.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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