domingo, 10 de outubro de 2021

Eterna saudade

Nelsinho girou a chave na porta e voltou-se para a moça, de pé no meio da sala:
A família viajou.
Laura oscilava de leve. Deixando escorregar a bolsa no braço, levou a mão aos olhos.
A sala rodando.
Ele não apanhou a bolsa no tapete.
Me segure, meu bem.
Sem dar um passo, estendeu a mão e a bela veio conchegar-se no seu peito. Ergueu-lhe o queixo, observou o rosto pálido, de olho cego – mordeu o lábio com beijo esfomeado. Ao sentir-lhe o peso vacilante, conduziu-a ao sofá, onde ela se deixou cair. Sacudia a cabeça no espaldar e, entre frases desconexas, chamava um nome que Nelsinho não era.
Por que judia de mim? – a voz dengosa de menininha enjoadinha. – Sempre me tratou mal.
Louco por você, minha flor. O herói já sem paletó.
Malvado! Gosta de me humilhar.
Ora, que bobagem.
Com dificuldade despiu-lhe o casaquinho.
Culpa minha não foi.
Bem sei.
Não. Você não perdoou.
Por que dois, ó Deus, para fazer o amor?
Lá para dentro.
Sem que ela se erguesse, não lhe baixaria a saia.
Diga se gosta de mim.
Você não vê? Quer ir ao meu quarto? Ou de meus pais? Cama de casal.
Será que não ...
Perdida nas nuvens da bebida, arregalou os olhos:
Aqui? No quarto de teus pais?
Que é que tem? É profanação?
O Cristo enorme, todo azul, ocupava a parede na largura da cama. Sentaram-se na colcha trabalhada de crochê.
Que beleza de colcha!
Beleza teu seio, meu amor.
A beijá-lo em desespero, Nelsinho sentia a língua engolida pela outra boca.
Me deu o desprezo.
O tipo era meu amigo.
Nadir era o meu amor – e fungou no seu ombro.
Ele está morto. Agora tire a roupa.
Ela desabotoou a blusa de brilhante malha negra.
Apague a luz.
Por quê?
Porque sim.
No escuro, ele descerrou a porta – o clarão do corredor invadiu o quarto. O herói arrancou a camisa. De combinação, perna cruzada, Laura cabeceava, a mão no queixo.
Tire essa roupa de uma vez.
Já tinha embolado a calça no tapete. Ela se pôs de pé, desprendeu a saia. Aflito, Nelsinho a apanhou e atirou longe.
Não jogue no chão!
Ela recolheu a saia de seda, dobrou-a sobre o mocho. Tirou a combinação. Tirou o sutiã.
Tire tudo.
Tirou a calcinha, indecisa no meio do quarto. Recuou até a faixa de luz – nua, duas vezes nua! Antes que o herói desferisse voo, fechou a porta, deitou-se ao seu lado. Ele estendeu a mão, alisava docemente o ombro. Correu os dedos titilantes pelo seio: uma pera que, tão madura, oscilava ao peso do biquinho.
Ai, benzinho, você é mau.
Quieta.
Entre gemidos balbuciava mil queixas.
Não.
Ele suspendeu o gesto.
Devagar, meu bem.
Tornou a babujar-lhe a orelha, o pescoço, o ombro, devagar, devagarinho.
De conta que sou o Nadir.
Debaixo dele o corpo sacudido de tremores.
Ó, não fale. Por amor de Deus. Não fale no Nadir.
Para se distrair, Nelsinho evocava com ranger de dentes as estrofes imortais de Casimiro de Abreu: Eu me lembro! eu me lembro! – Era pequeno ... Terceira vez ao escandir o verso – Que dura orquestra! Que furor insano!, ela deu um grito:
Você me arrebenta!
Atropelou o verso, perdeu a consciência. Voltou a si, a unha de leve na nuca.
Num bem-estar danado. E eu me doendo toda.
O moço ergueu os olhos para o quadro azul na parede:
Se o pobre Nadir nos visse...
Caiu a lâmina da guilhotina, espirrou longe a cabeça, ainda falando de espanto:
Que loucura é essa?
Tateou a nuca ferida, acendeu a lâmpada:
Está doida, minha filha?
Não. – E, olho fechado, a mordiscar-lhe o queixo. – Estou é com sede.
O golpe assassino das unhas no pescoço. Ele deu três pulos no tapete, a mão escondendo as vergonhas. Abriu a gaveta do camiseiro, escolheu o pijama de bolinha do pai, vestiu a calça: muito comprida, obrigado a enrolar a barra. Dirigiu-se à cozinha, tornou com a garrafa de gim, uma jarra de água e cubos de gelo. Laura envergava o casaco do pijama, todo abotoado. Com as duas mãos unia as abas, muito à vontade na cama sacrossanta da família.
Me achando bonita?
Gana de expulsá-la aos berros: Cadelinha!
Pintou o cabelo?
Desde que ele morreu.
Sob o paletó, nua e oferecida, uma perna dobrada.
Ai, minha perdição é a falsa loira. Cabelo oxigenado, sobrancelha bem preta!
Nelsinho serviu doses generosas, ela acendeu dois cigarros. Estenderam-se sobre os quadrinhos de crochê, obra de um ano inteiro das mãos diligentes da mãe.
Que tal o Nadir? Melhor que eu?
Não respeita os mortos?  De repente abriu o casaco.  Que acha de mim?
Mãezinha do céu: dois suspiros redondinhos com uma pitanga na ponta.
Não há outra igual!
A cabeça da bela pesava-lhe duramente no braço.
Ele era melhor?
Você é um colosso – Não morda, que dói.
Alumbramento no fio baboso de voz:
Ninguém dá nada por você... Magrinho como é!
Agarrou o copo, bebeu até a última gota. De voz rouca:
Ele foi o primeiro amor!
Olhos sonhadores, evocava o bem-amado perdido.
Nunca mais seria a mesma, tão outra que até pintara o cabelo. Só usava blusa negra de seda – a mortalha da viúva.
É tarde para chorar.
Estou em carne viva.
Não exagere, meu bem.
Queria bancar a virgem – o que nunca havia sido. Encolhia-se no canto da cama, enrolada na colcha.
Que você tem?
Com dor.
Não se faça de santinha. Depois dele, a quantos se entregou?
Com o Nadir era diferente! Era amor...
Um colosso, não era?
Ofendida, sentou-se na cama, estendeu a perna, repuxou a meia até a coxa luminosa de tão branca. Ele a agarrou. Com fúria defendeu-se, ó viúva inconsolável, carpideira da eterna saudade.
Não quero. Por favor. Agora não.
Mais tarde deixou que ela se vestisse. Acendeu as luzes, olhou em volta. Ufano, um herói pintado de ouro: o quarto era campo de batalha. O cadáver sangrava de suas feridas sem manchar os lençóis.
Poxa, sou mais homem do que meu pai.

Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba

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