— No Canecão? Hoje não dá, meu
chuchuzinho. Tou afundado no Stokoe, uma curtição tremenda. O quê?
Semiotics and Human Sign Languages. É isso aí. Te telefono
amanhã, tá?
— Sábado passado você já não pôde
sair, por causa de um tal Catichico…
— Catichico, não. Katicic, com k. Eu
tinha de atacar de Katicic lá no Centro. O Lopes veio pra cima de
mim com o Kramsky, então eu derrubei ele com o Katicic.
— Derrubou como? Você bateu no Lopes?
— Não é nada disso, anjo. O Lopes
apareceu muito pimpão mostrando The Word as a Linguistic Unit,
do Kramsky, gabando que era a última palavra em novidade. Então eu
corri à d. Vana e…
— Esse cara está hospedado com d.
Vana?
— Que hospedado coisa nenhuma, bem. É
livro, entende? Um livro do Katicic chamado A Contribution to the
General Theory of Comparative Linguistic. Comprei ele na livraria de
d. Vana, por sinal que ela me disse: “É tão caro, não vale a
pena comprar”, d. Vana é assim, fica com pena da gente gastar o
dinheiro com os livros de sua livraria. Mas isso não vem ao caso.
Trouxe o Katicic e pá! Atirei na cara do Lopes a teoria do Katicic.
— Deu coluna do meio?
— Um a zero. O Lopes não conhecia o
Katicic, a turma também não, e daí, o Kramsky já tá meio
superado. Eu soube que ano passado o Magalhães já tinha citado ele
em Atibaia. E o Magalhães não é lá muito atualizado. Imagine você
que ele ainda cita Stratificational Grammar, do Sampson!
Sampson não é mais autor que se possa citar. Sampson anda muito por
baixo.
— Que que ele fez para andar por baixo?
— Nada. Exatamente isso. O Sampson não
fez nadinha. Ficou na Stratificational Grammar. Impressionou,
abafou, depois calou. É o que me garantiu o Azevedo, que foi vidrado
no Sampson, depois enjoou. O Azevedo diz que no livro dele o que vale
é o título.
— Querido, você promete que semana que
vem combina um programa comigo?
— Ah, isso prometo sim. Tá prometido.
Quer dizer, fica dependendo de um papo meu com o Rogério.
— Que é que o Rogério tem com os
nossos programas?
— Ele ficou de me arranjar o Pike, de
que eu preciso muito para a tese que estou preparando. A tese para
aquele simpósio que vai haver em Campina Grande, já contei a você,
em agosto.
— E daí?
— Daí, que o Rogério ainda não
acabou de fichar o Pike, e se ele acabar até domingo, segunda-feira
me passa o livro. Tenho de passar a semana inteira estudando o Pike.
— Sábado também?
— Acho que o Pike vai me absorver até
sexta-feira. Você não faz ideia, é um troço da maior importância,
presta atenção no título: Language in Relation to the Structure
of Human Behavior. Como é que eu posso perder uma coisa dessas,
coração?
— Você não gosta de mim.
— Gosto milhões, gosto trilhões,
amor. Mas ou eu pego logo o Pike enquanto os outros não avançam
nele (o Rogério é camarada, o Rogério é um cara que não existe)
ou eu sacrifico minha atuação em Campina Grande. Você quer me ver
desmoralizado em Campina Grande, diz, você quer?
— Quero sair com você.
— Eu também quero sair com você, mas
será que você não percebe que os interesses da cultura sobrelevam
nossos prazeres pessoais, e que o amor é sobretudo uma forma de
compreensão?
— Você não me gosta, você gosta é
desses bichos esquisitos, sei lá.
— Não diz uma coisa dessas, amorzinho.
Você está em tudo que eu faço, tudo que eu penso. Ainda ontem
estava lendo o Ollen, Coding Information in Natural Languages,
e sua imagem aflorava em cada página, quase em cada palavra.
Baralhei tudo, acabei grilado.
— Mentira.
— Mentira não, te juro.
— Nunca hei de me esquecer de suas
férias de 72…
— Que eu dediquei a Lévi-Strauss? Que
é que eu podia fazer, my love, se a patota gamou nele e eu
tinha que entrar na jogada? Olha que eu desisti de uma semana Barthes
por tua causa; que deixei de me inscrever num curso sobre Derrida e
Greimas para te acompanhar no festival de cinema durante uma semana.
Por você eu faço tudo. Mas deixa eu curtir o meu Stokoe, deixa!
— Adeusinho, viu? Quando acabar de ler
esses chatos, telefone para as Bahamas e pergunte se eu cheguei lá!
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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