sábado, 24 de julho de 2021

Legendar o mundo

Desanuviou em mim a ideia de que as coisas existiam alheias a meu desejo. Viver exigia legendar o mundo. Cabia-me o trabalho exaustivo de atribuir sentidos a tudo. Dar sentido é tomar posse dos predicados. Trabalho incessante, este de nomear as coisas. Chamar pelo nome o visível e o invisível é respirar consciência. Dar nome ao real que mora escondido na fantasia é clarear o obscuro. Ainda criança eu carregava o peso da terra, sem estar no bem fundo.
O irmão triturador de vidro, a irmã que bordava mares, a que deixara o gato órfão, a nascida em todas as manhãs no globo terrestre aninhavam-se, agora, apenas em minha memória. Jamais podia pensá-los em alguma paisagem. Restava-me reinventá-los dispersos, indignados com a vitória amarga do tomate maduro. Havia, sim, havia lugares que meu compasso aberto não alcançava. O padre me emprestava sua bicicleta, por eu decorar os dez mandamentos. Tudo exigia um preço. Eu pedalava pelas ruas buscando encontrar-me em cada fim de estrada, no depois da última saudade, na outra margem do rio. Mas também lá eu não estava. A velocidade fortificava a força do vento que varria meus pensamentos, provisoriamente.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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