segunda-feira, 19 de julho de 2021

A poesia

Quanta obra de arte... Já não cabem no mundo... É preciso pendurá-las fora das casas... Quanto livro... Quanto livrinho... Quem é capaz de os ler?... Quem é capaz de os ler?... Se fossem comestíveis... E se numa onda de grande apetite fizéssemos deles salada, se os picássemos e os enfileirássemos... Mas já não se pode mais... Já nos têm pelo cabresto... O mundo se afoga nessa maré... Reverdy me dizia: “Avisei o correio para que não mandasse mais livros. Não podia abri-los. Não tinha lugar. Trepavam pelos muros, temi uma catástrofe, despencariam sobre minha cabeça...” Todos conhecem Eliot. Antes de ser pintor, de dirigir teatro, de escrever luminosas críticas, lia meus versos... Eu me sentia lisonjeado... Ninguém os compreendia melhor... Até que um dia começou a me ler os seus e eu, egoisticamente, corri protestando: “Não os leia, não os leia”... Me tranquei no banheiro mas Eliot, através da porta, continuava lendo. Senti-me muito triste... O poeta Frazer, da Escócia, estava presente e me repreendeu: “Por que tratas Eliot assim?”... Respondi: “Não quero perder meu leitor. Eu o cultivei. Ele conhece até as rugas de minha poesia... Tem tanto talento... Pode fazer quadros... Pode escrever ensaios... Mas quero guardar este leitor, conservá-lo, regá-lo como planta exótica... Tu me compreendes, Frazer”... Porque a verdade, se isto continua, os poetas publicarão somente para outros poetas... Cada um tirará seu livrinho e o meterá no bolso do outro... seu poema... e o deixará no prato do outro... Quevedo o deixou um dia sob o guardanapo de um rei... Isso sim valia a pena... Ou, em pleno sol, a poesia numa praça... Ou que os livros se desgastem, se despedacem nos dedos da multidão humana... Mas a publicação de poeta para poeta não me tenta, não me provoca, não me incita senão a me emboscar na natureza diante de um rochedo ou de uma onda, longe dos editoriais, do papel impresso... A poesia perdeu seu vínculo com o distante leitor... É preciso recobrá-lo. É preciso caminhar na escuridão e se encontrar com o coração do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas, dos que a certa hora crepuscular ou em plena noite estrelada precisam nem que seja de um único verso... Esse encontro com o imprevisto vale pelo tanto que a gente andou, por tudo o que a gente leu e aprendeu... É preciso perder-se entre os que não conhecemos para que subitamente recolham o que é nosso da rua, da areia, das folhas caídas mil anos no mesmo bosque.., e tomem ternamente esse objeto que nós fizemos... Somente então seremos verdadeiramente poetas... Nesse objeto viverá a poesia.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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