A
julgar pela quantidade sempre renovada de filmes e livros sobre ETs
de todos os tipos, fica óbvio que temos um fascínio inesgotável
por essas criaturas imaginárias. Seres alienígenas habitam as
profundezas do nosso inconsciente coletivo, espelhos do bem e do mal
que somos capazes de fazer. Basta uma breve incursão na história do
colonialismo, e, em particular, do embate entre os europeus e os
nativos das Américas, da África e do Pacífico, para entender que,
quando duas culturas colidem, a mais ingênua e desarmada perde feio.
Somos nós os alienígenas. No decorrer da história, as
representações ficcionais de seres extraterrestres refletem o que
sabemos do mundo, o que sabemos de nós, os nossos medos e
expectativas, as nossas esperanças e os nossos medos.
Existe,
porém, algo que raramente consideramos em nossas reflexões sobre
alienígenas. Não me refiro, aqui, aos tipos ficcionais que vivem
nas páginas de nossos livros ou nas telas de cinema, mas aos que
possivelmente existem em algum canto da nossa galáxia, ou de uma
galáxia bem longe da nossa. Basta lembrar que nossa galáxia é uma
dentre centenas de bilhões de outras espalhadas pela vastidão do
espaço, cada qual contendo de dezenas de milhões a centenas de
bilhões de estrelas. Portanto, a probabilidade de que inteligências
extraterrestres existam é razoável, mesmo se nunca tivemos contato
direto.
Se
existem, e este é o ponto que nos interessa, como sobrevivem aos
seus desafios sociais, políticos e econômicos? Mesmo especulando
sobre a existência de civilizações extraterrestres, podemos
aprender lições essenciais sobre alguns de nossos dilemas atuais
mais desafiadores, incluindo a sobrevivência de nossa própria
espécie. Ou seja, podemos aprender lições de sobrevivência
planetária com os ETs, o que é cada vez mais essencial nos dias de
hoje.
Antes
disso, é bom rever algumas informações importantes, de modo a
contextualizar nosso argumento. Como é o caso conosco aqui na Terra,
os alienígenas vivem ou se originaram em algum planeta (ou lua) em
órbita em torno de uma estrela. Para simplificar, vamos considerar
apenas ETs com características gerais relativamente semelhantes às
nossas: por exemplo, vida baseada em compostos de carbono e
dependente de água. É possível que tenham evoluído muito além
desses vínculos químicos, sendo mais máquinas do que carbono.
De
qualquer forma, certamente tiveram uma origem bioquímica, mesmo que
tenha ocorrido milhões de anos no passado. Sua sobrevivência, tal
como a nossa aqui, depende crucialmente da quantidade de energia
emitida pelo seu sol em forma de radiação, e de como essa radiação
interage com a atmosfera do planeta (ou lua) onde habitam. No nosso
caso, a Terra absorve cerca de 71% da energia total do Sol que chega
aqui: em torno de 23% dessa energia é absorvida na atmosfera por
vapor d'água, poeira e ozônio, e cerca de 48% na superfície.
São
aproximadamente 160 watts por metro quadrado no solo. Imagine cobrir
a superfície da Terra com lâmpadas de 160 watts a cada metro
quadrado e tê-las iluminadas durante o Natal. Não seria um uso
muito inteligente de energia, mas certamente uma imagem belíssima,
se observada de altas altitudes. Para que um planeta possa acolher
formas de vida por um tempo relativamente longo (no mínimo, milhões
de anos), é essencial que seja relativamente estável: sua órbita
em torno da estrela não pode ser errática; sua composição
atmosférica não pode mudar radicalmente em períodos geológicos
curtos (de milhões de anos); seu clima deve ser estável, com
flutuações de temperatura dentro do que é permissível
metabolicamente, ou seja, não muito mais do que 100 graus em torno
de zero Celsius. (Ou seja, de -50ºC a 50ºC. Existem exceções,
como os seres que vivem perto de ventas vulcânicas submarinas onde
as temperaturas podem ser mais altas. Mesmo assim, existem limites
para que a vida seja viável.)
O
planeta precisa, também, receber enormes quantidades de energia,
redistribuindo-a pela superfície através de processos climáticos e
geológicos. Qualquer espécie alienígena que exista na nossa
galáxia, principalmente se for inteligente, que é o que nos
interessa aqui, precisará habitar um mundo que tenha propriedades
gerais semelhantes a essas. Por que as formas de vida inteligente
precisam de maior estabilidade? Porque, para que a vida possa evoluir
a partir de formas rudimentares, os seres unicelulares, até seres
multicelulares complexos e, destes, até seres inteligentes, são
necessários muitos milhões de anos, se não bilhões. (Aqui na
Terra, foram pelo menos 3,5 bilhões de anos.)
Da
mesma forma que não dá para assistir à última cena de uma peça
teatral com três horas de duração num teatro que pega fogo após
uma hora, o palco em que ocorre a transformação da química
inanimada em vida complexa, o planeta, tem que permitir que esse
drama bioquímico evolua a passos lentos. E não há a menor garantia
de que haverá um final feliz. (Se entendermos por felicidade a
emergência de criaturas inteligentes.)
Nossa
espécie existe há aproximadamente 200 mil anos, um tempo
irrelevante quando comparado aos 4,5 bilhões de anos do nosso
planeta. Num contexto cósmico, em que mesmo milhões de anos são um
período efêmero, somos uma espécie ainda bebê, com muitos
desafios a enfrentar pela frente, especialmente no que tange à nossa
sobrevivência em longo prazo. É aqui que os ETs podem ser úteis. A
primeira coisa que devemos notar, ao menos baseados na nossa
história, é que duas ou mais espécies inteligentes não podem
coexistir no mesmo planeta. (Note que existem vários modos de
definir e quantificar inteligência. Estou interessado aqui em
espécies com inteligência criativa capaz de desenvolver tecnologias
avançadas.)
Dada
a natureza combativa dos seres vivos, centrados, acima de tudo, na
sobrevivência, outra espécie inteligente seria vista como uma
ameaça, ao menos no início da corrida evolucionária. Aqui na
Terra, os neandertais, que mostraram sinais de inteligência superior
a outras espécies que os antecederam, foram parcialmente assimilados
e, na maioria, aniquilados pelos nossos ancestrais.
A
coexistência pacífica entre duas espécies que podem competir em pé
de igualdade por recursos necessários para a sobrevivência é
implausível, a menos que ambas tenham atingido um patamar moral
extremamente elevado. Porém, até que isso ocorra, a partir do
desenvolvimento de uma estrutura social estável e democrática onde
a vida é respeitada acima de tudo, seria provavelmente tarde demais.
(Mesmo numa mesma espécie, especialmente uma espécie inteligente
com padrão moral inferior, valores culturais distintos e diferenças
étnicas podem levar a conflitos sérios, do racismo a perseguições
ideológicas, como vemos aqui todos os dias. Mas esse é um assunto
para outro ensaio.)
Dada
a dificuldade de coexistência entre duas espécies inteligentes,
vamos, portanto, considerar seres alienígenas de uma mesma espécie,
que, de alguma forma, encontraram os meios físicos e morais para
sobreviver por milhões de anos. Quais os seus segredos? Antes de
tudo, entenderam que uma relação predatória com o seu planeta e
com outras formas de vida levaria, mais cedo ou mais tarde, à sua
própria destruição. Entenderam, também, que o seu planeta, mesmo
que muito grande e fértil, tem recursos limitados, e que uma
exploração irracional dele iria transformá-lo num deserto. O
exemplo doloroso da Ilha de Páscoa ilustra perfeitamente o que
poderia ocorrer numa escala global com uma espécie que tem uma
relação parasítica com a terra da qual depende.
Os
alienígenas teriam aprendido a viver com – e não contra – o seu
planeta, respeitando seus recursos e planejando cuidadosamente como
explorá-los de forma sustentável. Teriam aprendido a otimizar e
maximizar o uso da energia vinda de sua estrela, como estamos
começando a fazer aqui com a energia solar e eólica. Se a estrela
não emitisse energia necessária para suas necessidades, os
alienígenas teriam desenvolvido espelhos e outras tecnologias
capazes de focar e aumentar a quantidade de energia atingindo a
superfície do planeta.
Os
alienígenas teriam entendido a interconectividade de todas as
criaturas vivas; saberiam que ocupar o topo da cadeia alimentar
significa ter a responsabilidade de preservar a biosfera, de modo a
estender o uso de seus recursos por período ilimitado. Teriam
aprendido que, para viver, precisariam encontrar meios de respeitar a
diversidade da vida. Isso só poderia ocorrer se houvessem redefinido
sua relação com outras criaturas vivas, indo de predadores a
protetores.
Os
alienígenas teriam entendido que a disparidade financeira (se
tivessem uma economia) e a manipulação cultural levam à pobreza e
à instabilidade social, ambas as causas dominantes da predação
planetária; e que, para garantir sua sobrevivência em longo prazo,
precisariam erradicar a desigualdade social. Teriam, portanto, criado
valores morais que garantissem a igualdade social, dividindo recursos
naturais e econômicos de forma justa e equilibrada.
Por
outro lado, não teriam erradicado a competição, por entenderem ser
essencial para a inovação e a felicidade individual e coletiva;
teriam, sim, criado mecanismos para assegurar que todos tivessem as
mesmas oportunidades de atingir o sucesso. Saberiam que uma sociedade
justa não precisa, ou não deve, ser estéril. Teriam entendido que
essas metas socioeconômicas pedem o sacrifício dos que detêm mais
recursos, mas saberiam, também, que esses sacrifícios seriam
temporários, garantindo a sobrevivência de todos. Teriam criado, em
longo prazo, uma sociedade com certo nível de disparidade – pois
seus intelectuais já teriam entendido que a igualdade total leva a
uma distopia – baseada na dignidade, no respeito e na justiça.
O
resultado desse projeto alienígena de proteção de recursos
naturais e justiça social em escala planetária seria
revolucionário. Podemos chamá-lo de “socialismo natural”. Uma
vez iniciado, produziria uma transição nos valores morais da
espécie, apagando os últimos vestígios da brutalidade intrínseca
oriunda das disparidades e impulsos evolucionários. Levaria a uma
nova era, baseada numa relação moral superior com o planeta, os
animais, e entre todos os membros da sociedade. Essa nova era
celebraria, ao mesmo tempo, a diferença individual e a unidade que
conecta os habitantes de uma mesma espécie, todos dividindo o
planeta e seus recursos naturais. Esses alienígenas teriam
sobrevivido por milhões de anos, criando uma sociedade que mal
podemos imaginar.
Temos,
aqui na Terra, nesse conturbado século XXI, muito trabalho pela
frente.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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