O garoto devia ter uns 10 anos e nessa
idade hoje eles já estão cansados de saber de onde vêm os bebês.
Queria mais. Queria o etéreo, o mistério para além da biologia
profana. ‘Tio”, ele perguntou lá do fundo da sala, num encontro
que tive com estudantes, “tio, de onde nascem as crônicas?”
Qualquer pessoa que abre uma tela de
computador com a obrigação de em seguida enchê-la de palavrinhas
sabe que essa é a pergunta basilar. De onde vem o baião, de onde
nasce o mote que deflagra a criação? Eu vi, em 1996, na minha
frente, Carlos Heitor Cony escrevendo uma crônica de tamanho médio,
de qualidade alta, em não mais que 15 minutos. Acho que Cony sabe a
resposta.
Eu, modesto aprendiz de feiticeiro,
temeroso de oferecer abstrações ao garoto pragmático, recitei como
única pista um caderno azul que carrego há décadas. Existe. Nele
fui jogando palavras extravagantes, pensamentos curiosos, frases de
efeito, pára-choques de caminhão e tudo o mais que pulsasse letras.
Eu esperava que, num dia de crise, uma palavra daquelas, friccionada
com as enzimas do crânio, provocasse a faísca, fizesse jorrar
aquele filetinho de sangue que escorre da testa de todo autor quando
ele encontra o assunto. Sabia que um dia ele me faria sentido. Ei-lo.
É íntimo demais e só vai declarado
aqui porque li, ou um professor das antigas me disse, que o cronicar
é de exposição do autor, um gênero de bermudas em que o dono
delas, geralmente um tímido-assanhado, radicaliza o processo e parte
para o desnudamento total diante da plateia.
Abrir o caderninho azul é um strip-tease
de cabeça. Confesso que em algum momento da vida anotei nele, para
reflexões que me poderiam inspirar mais adiante, tanto uma pergunta
do barbudo Enéas num debate de televisão (“Lula, o que você
pretende fazer com a bauxita refratária?”), como a máxima do
filósofo africano Hardy Har-Har (“Não vai dar certo, Lippy!”).
O juiz de futebol Mario Vianna também está perpetuado: “No meu
dicionário não tem o verbo modéstia à parte.”
Jamais me acudi diretamente dessas
sabedorias alheias, mas sabe-se lá como essas coisas funcionam nas
engrenagens internas. São frases ora recolhidas em orações
católicas (“Zombam da fé, os insensatos”, do hino “Queremos
Deus”), ora em hinos de times de futebol (“Ninguém nos vence em
vibração”, do Esporte Clube Bahia), ora em panfletos da Madame
Cecília (“Resolve problemas de impotência e safra da lavoura”).
Um caos de despropósitos. O locutor da Rádio Relógio propagandeia
barato que “Depois do sol, quem ilumina seu lar é a Galeria
Silvestre” e, em seguida, antes de dar a hora exata, filosofa que
“Cada minuto da vida é um milagre que não se repete”. O
argentino Hector Babenco explica por que ficou no Brasil: “Só aqui
tem Fanta Uva.”
Comecei a registrar esse garimpo
desconexo depois de ter lido, nas entrevistas da Paris Review,
que dúzias de grandes autores faziam o mesmo. Anotavam o que lhes
parecia curioso, engraçado, estimulante, misterioso – e entregavam
à depuração de suas almas. É uma espécie de agenda de
elucubrações, uma malhação intelectual, tranco que se dá quando
o raciocínio não pega. Sabe-se que meia dúzia de supinos turbinam
o bíceps. Mas o que fazem com a gente as palavras que jogamos para
dentro?
Não sei, por exemplo, o que fiz
exatamente com a informação registrada do filme “Aviso aos
navegantes”. Está anotada no meu caderninho. Oscarito, falso
médico, diagnostica numa paciente “um desequilíbrio no
vago-simpático” e lhe receita “bigamatinil propitelamina
composta de efeito fulminante”. Um disparate desses não move uma
linha no texto de ninguém. Mas, delícia das delícias, sugere aos
feixes nervosos do intelecto o tom de por onde você quer trafegar.
Uma crônica pode nascer de uma palavra,
eu disse ao garoto enquanto desfolhava o caderninho azul, e dei como
exemplo um texto surgido apenas com a intenção, o resto era
detalhe, de encher seis mil toques em louvor à existência entre
nós, e não deixar que morresse jamais, a palavra borogodó. Torço
para que o mesmo não aconteça com bucentauro, berdamerda, nenúfar,
alaúza, tremebunda, obnubilar, nefelibata, buteiro, perrengue,
parlapatão, peripatético e outras palavras de muitas sílabas que
fui anotando na medida em que elas desapareciam dos livros. Costumo
recomendar palavras curtas a quem pede conselhos para escrever bem.
Mas, de vez em quando, acho que a proparoxítona cai redonda, pedra
de gelo que dá choque térmico e muda o ritmo de um texto
telegráfico.
O caderninho azul que ora abro em público
é uma tremenda bandeira.
Tem pílulas da ética de Don Corleone
(“fique perto dos amigos e muito mais dos inimigos”), máximas
cínicas do jornalismo (“a função do bom editor é separar o joio
do trigo, e publicar o joio”), mandamentos da masculinidade por
John Wayne (“fale com calma, fale devagar e não diga muita
coisa”). Qualquer dia desses vou mandá-lo para a minha analista
freudiana. Alguns escrevem diários, outros anotam frases soltas. Se
existe quem leia a vida das pessoas na borra do café, imagine
consultando um caderninho desses.
Anotei nele que “Escrevo para ficar
louro e de olhos azuis”, declaração de um escritor perguntado
sobre a razão de tanto esforço solitário com as palavras. Pode ser
daí, por vaidade, que nasçam as crônicas. Anotei também a
sabedoria de Tom Jobim (“O prazo é a grande musa inspiradora”).
Pode ser daí, da necessidade mais prática. Donde quer que nasçam
esses bucentauros de levezas que às vezes parecem querer dizer outra
coisa, como o nome estranho da gôndola dos duques de Veneza, as
crônicas só querem mesmo é navegar com o leitor até este porto
final e desejar que ele tenha se divertido com a viagem.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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